terça-feira, 30 de setembro de 2014

Resenha: O Colecionador (filme)

Este é considerado o último grande filme do diretor norte-americano William Wyler, que também realizou a melhor versão de O Morro dos Ventos Uivantes para o cinema. É adaptado do livro de John Folwes (comentado no blog) que foi um best seller em sua época. Apesar de o filme e o romance terem muito pontos em comum é possível notar que existem pequenas diferenças entre eles. 

                                                O sequestrador em ação

O Colecionador chegou aos cinema em 1965 e foi concebido como um thriller de suspense deixando de lado aspectos da vida de um dos personagens (que poderia torná-lo longo e até mesmo um pouco aborrecido) e outros elementos do romance, tais como discussão sobre o conceito de beleza da arte e o conflito entre classes sociais. Assim, o filme de Wyler consiste, acima de tudo, em um elaborado exercício de suspense que se sustenta por quase duas horas graças a ótima atuação do casal de protagonistas (Terence Stamp e Samanta Eggar, que ganharam merecidamente os prêmios de melhor ator e melhor atriz no festival de Cannes daquele ano) e pelo excelente trabalho de direção de Willer, que cria um espaço claustrofóbico e até mesmo assustador, no qual, inicialmente, se destaca uma iluminação em tom vermelho - provavelmente, inspirado nas produções de terror de Mario Bava.

A prisão subterrânea 

Também no filme há diferenças marcantes na caracterização de personagens que diferem um pouco no livro. Frederic, o sequestrador (interpretado de forma brilhante por Terence Stamp, mais conhecido como a drag queen de Priscilla: A Rainha do Deserto)  é bem mais sinistro, misterioso e, em certo aspecto, até mesmo charmoso, enquanto sua vitima, a jovem Miranda é menos sexualizada e  mais frágil. 

Terence Stamp


Samantha Eggar 

Embora o filme tome algumas liberdades com a trama do romance, esta é mantida sem muitas mudanças em sua essência. Ela é bastante simples e começa da mesma forma que o livro de Folwes. Após ganhar uma fortuna na loteria esportiva, um tímido funcionário público (Terence Stamp) decide sequestrar uma moça (Samantha Eggar) por quem é secretamente apaixona e mantê-la prisioneira em uma casa isolada até que ela se apaixone por ele.
É partir deste mote que o filme se desenvolve. Vale destacar na parte inicial de O Colecionador, a sequencia que pela forma como foi realizada totalmente filmada à distância chega a ser angustiante, em que Frederic persegue Miranda pelas ruas da cidade Londres, como se fosse um caçador à procura de sua caça. 


O sequestrador na caça de seu objeto de desejo.

Wyller é um diretor que sabe muito bem extrair emoções dos atores e também explorar sutis mudanças de expressão por meio de close ups fechados que sugerem nuances no comportamento de ambos. Apesar do filme somente se concentrar em dois personagens, ele nunca é cansativo e desinteressante. É importante salientar que o diretor consegue criar cenas carregadas de tensão a partir de situações aparentemente banais. Dessa forma, um olhar sinistro de Stamp pode ocultar uma intenção escondida, a qual pode incutir um desejo de causar algo terrível, ou uma fala agressiva dele dirigida a jovem que é sua prisioneira são capazes de mexer com nossa imaginação e suscitar uma sensação de apreensão diante do que ele pode fazer com a moça se ela se recusar a se submeter à sua vontade.   
Visto hoje, O Colecionador parece ser um filme que, ao contrário de muitos produzidos na década de sessenta, melhorou com o tempo. Privilegiando, e certa medida ampliando o aspecto gótico da obra original de Folwes – principalmente, por meio da ênfase no cenário da prisão subterrânea de Miranda de modo que esta possa ser visualizada em detalhes, esta produção consegue prender a atenção do começo ao fim.
O filme de Wyler faz uma síntese das melhores passagens do romance e reproduz na íntegra seu final inesperado e perturbador, que demonstra o desenvolvimento de uma mentalidade insana e perigosa. Em sua obsessão pela mulher amada a ponto de aprisiona-la totalmente no interior de uma antiga mansão, o sequestrador de O Colecionador em alguns aspectos antecipa a assustadora figura do psicopata que aprisiona suas vítimas e as trata como se fossem objetos que podem ser descartados e que, posteriormente, é retratada de forma assustadora em filmes como Seven – Os Sete Crimes Capitais e O Silêncio dos Inocentes.

           A jovem é tratada como uma borboleta que faz parte de sua coleção


Mesmo após tanto tempo, O Colecionador mantém seu impacto e provoca inquietação e, até um certo temor quando pensamos que possam existir pessoas como seu protagonista que, por de trás de uma aparência aparentemente calma e tímida esconde um lado terrível e doentio que pode se manifestar a qualquer momento. Sem dúvida, trata-se de uma obra-prima sétima arte, um grande clássico do gênero suspense que vale a pena ser visto e descoberto por uma nova geração de espectadores de cinema.
Obs.: O filme foi lançado pela distribuidora Versátil, que tem se especializado em clássicos. Este tem ótima qualidade de imagens, mas tem somente extra o trailer.
 

Cotação: ***** (excelente)

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Resenha: A assombração da casa da colina, de Shirley Jackson

Finalmente, consegui ler este romance muito elogiado por Stephen King em Dança Macabra, seu livro de ensaios sobre o gênero do terror no cinema e na literatura. Apesar ter visto o filme (The Haunting, a resenha foi publicada no meu blog) baseado neste livro da autora norte-americana Shirley Jackson, me surpreendi positivamente com ele.

                                                  Shirley Jackson 

Jackson tem uma escrita sofisticada, na qual se sobressai o uso de metáforas para descrever tanto o assustador cenário de seu romance – a sinistra Casa da Colina, que em seu enredo aparece como se fosse uma personagem, quanto para delinear a complexa e estranha personalidade de sua protagonista, Eleonor Vance, uma de suas notáveis criações da autora e, talvez uma das melhores da literatura norte-americana de terror gótico do século XX.
Vale ressaltar que não é tanto a exploração do “batido” tema da casa mal assombrada que se destaca neste romance, mas forma como Jackson desenvolve sua narrativa que possibilita muitas leituras, até mesmo pelo viés do fantástico, de acordo com Todorov. Neste aspecto, me parece que, apesar de ser um livro de leitura fácil, este ao ser traduzido deve perder um pouco de seu aspecto intrigante.
Sua premissa é bastante simples. O pesquisador Montague Sommers reúne um grupo de pessoas, algumas delas supostamente com habilidades especiais, com o propósito de investigar a existência de estranhos eventos em uma antiga mansão conhecida como "Casa da Colina". Ela fica localizada em região isolada e, desde o começo do romance é descrita como um organismo vivo, de natureza maligna e duradoura. Além disso, a Casa da Colina também serviu de cenário para mortes misteriosas, que desafiam a imaginação dos habitantes que moram em suas proximidades. 

                                        A sinistra Casa da Colina

Nesta investigação acerca dos mistérios envolvendo esse lugar assustador, Sommers conta com a ajuda de Eleonor, uma mulher sofrida e, que aos poucos demonstra sinais de perturbação mental. Ela estabelece uma relação de amizade – em que é sugerida de forma sutil uma atração sexual, com Teodora, uma mulher excêntrica, que também parece ser sensitiva e com Luck, um rapaz fanfarrão e irreverente que participa do grupo, porque tem interesse em herdar a antiga propriedade. Contudo, gradativamente, Eleonor vai se sentindo cada vez mais ligada a Casa da Colina e tem a sensação de que está se tornando uma extensão dela. Durante o desenvolvimento do romance, chama a atenção na escrita de Jackson os personagens bem elaborados, que fogem do esquema maniqueísta, a utilização inventiva de artifícios recorrentes dos romances góticos, visando instaurar no interior da Casa da Colina uma contínua atmosfera sobrenatural, sem apelar para aparição de entidades fantasmagóricas.

                                     a equipe de caça-fantasmas

Jackson se vale da descrição detalhada do cenário, de modo que leitor consiga visualizá-lo nos mínimos detalhes, ou seja, como algo vivo que parecer ter vida própria e, por isso capaz de provocar uma constante sensação de estranhamento. Embora a autora sugira a existência de uma manifestação do elemento sobrenatural no interior da casa, por meio de acontecimentos aparentemente inexplicáveis, tais como um intenso frio um dos corredores ou a intensa batida que deforma a aparência da porta do quarto de Leonor, ela mantém sobre ele uma aura de obscuridade que se mantém intacta até o desfecho abrupto e surpreendente de seu romance.

     Eleonor: louca ou vítima das ações de terrível força força sobrenatural?

Talvez, para aqueles que procuram em A assombração da casa da colina cenas de horror no estilo de outras, que aparecem e se destacam em livros de Stephen King e demais autores possam ficar decepcionados com o romance de Jackson que explora a temática sobrenatural de forma discreta, sem nenhuma cena de sangue ou violência. Por outro lado, os leitores que visam encontrar uma forma de provocar o medo e tensão, principalmente, associado aos terrores que podem ter sua origens no lado obscuro e até certa medida, sinistro da mente humana vão encontrar muita coisa para apreciar neste livro que quando termina deixa muitas dúvidas no ar e por é capaz de permanecer em nossa memória durante muito tempo.  Para mim, assim como na opinião King, trata-se de um grande clássico do gótico moderno, assustador e fascinante ao mesmo tempo, que demonstra o talento de uma autora pouco conhecida no Brasil e que merece ser descoberta pelos leitores.
Cotação: ***** (excelente)
Observação: Infelizmente, este romance em português foi publicado pela editora Francisco Alves pelo selo “mestres do horror e da fantasia” nos anos oitenta e encontra-se esgotado. Se quiser é possível encontra-lo em sebos, mas eu aviso que os preços são exorbitantes. Eu li em inglês (quem tem domínio da língua, eu sugiro que leia os textos de Jackson no original, uma vez que se traduzidos eles parecem “perder” em muitos aspectos) uma edição da American Library, que contém este e outro chamado Nós sempre vivemos em um castelo (em breve será resenhado no blog), assim como 21 contos escritos pela autora.  

sábado, 20 de setembro de 2014

Resenha: O Colecionador (livro), de John Fowles

 Eu conhecia O Colecionador, por meio de sua adaptação cinematográfica realizada pelo diretor norte-americano William Wyler, em 1965. Tinha visto o filme considerado um clássico e achado muito bom e na época atual pode ser considerado uma obra-prima do cinema (em breve, vou comentá-lo aqui). O interesse em ler o romance que deu origem a ele escrito por John Fowles surgiu a partir de uma citação de um de seus trechos que abre um dos capítulos de Misery: louca obsessão, de Stephen King: 
“Escrever é uma droga. É a única coisa pela qual eu anseio. Hoje à tarde eu li o que escrevi... e pareceu vívido. Eu sei que parece vívido porque minha imaginação preenche as partes que uma pessoa não entenderia. Quer dizer, é vaidade. Mas parece magia... E eu simplesmente não posso viver neste presente. Eu enlouqueceria se o fizesse”
Este fragmento exprime um dos pensamentos de Miranda, a personagem do romance de Folwles que para mim é das mais interessantes da literatura inglesa do século XX. Fowles faz dela uma espécie de alter-ego, que exprime sua visão crítica sobre variados assuntos. É Miranda que exprime as ideias do próprio autor sobre a criação artística, principalmente, no que se refere a a necessidade de se criar algo original que possa expressar a  beleza da arte, as mudanças radicais que se passavam na década de sessenta – a liberação sexual, a ameaça de bomba atômica, o ativismo político e, principalmente, sobre o conflito de classes sociais na Inglaterra.
O romance tem um ponto de partida bem simples, que foi retomado por King em Louca Obsessão, embora, o autor norte-americano tenha propositalmente invertido os papéis de vítima e algoz. Além disso, King explora o tema da criação literária de forma bem mais ampla que Folwes, que é bem mais sutil em seu livro. A trama de O Colecionador começa quando Frederick Clegg, um tímido funcionário público, em lance de sorte (ou azar, dependendo de que perspectiva se vê esse evento) ganha uma fortuna na loteria esportiva. Ele é apaixonado por Miranda, uma bela e jovem estudante de Artes que nem sabe que ele existe. Sua obsessão por ela é tão grande, que Frederick compra um antigo casarão afastado da cidade e decide manter a moça sua prisioneira neste local até que ela se apaixone por ele. É a partir dessa situação – um elemento recorrente nos principais romances góticos de Ann Radcliffe, que Folwes desenvolve a narrativa.
É justamente a forma de narração empregada pelo autor que consiste em um dos grandes méritos do romance como expressão literária. Este é dividido em capítulos e assim temos os fatos narrados a partir de diferentes pontos de vista. Dessa forma, o autor constrói um texto permeado de várias tensões, no qual é construída uma continua atmosfera de terror/suspense e os eventos são gradativamente revelados a partir do olhar tanto de Frederic como de Miranda.
Vale ressaltar que Folwes inverte até mesmo o comportamento de seus personagens centrais. Apesar de Frederic ser o sequestrador, ele é descrito um ser humano incompleto – Miranda o apelida de Calibã, a criatura monstruosa e submissa de A tempestade, com muitas lacunas no que se refere a reações emoções, e comportamento que reflete o mau gosto da classe suburbana. Por outro lado, Miranda a vítima que é mantida sequestrada ao poucos revela ter uma personalidade forte e determinada. Mesmo estando em uma situação de desvantagem, ela não se “dobra” diante de Frederic e procura demonstrar sua superioridade intelectual e humilhar seu sequestrador.
Este conflito entre duas pessoas com personalidades tão diferentes é expresso por meio de diálogos, nos quais a Miranda fala como uma metralhadora, "disparando" para todo os lados. Dessa forma, Folwes faz uso dos artifícios da literatura gótica, para propor em seu romance uma interessante discussão sobre o que vem a ser a verdade arte e também expor as preocupações e temores que amedrontavam a sociedade britânica. Assim, Frederic representa o que é antiquada, de mau gosto e conservador enquanto Miranda remete aquilo que é ousado, inovador e até mesmo provocativo do ponto de vista artístico.
Na visão distorcida de Frederic a mulher que mantém prisioneira é como se fosse uma linda borboleta que faz parte de sua coleção. Contudo, Miranda em vários momentos procura demonstrar que não é um ser idealizado; ela é uma mulher que exprime seus desejos e também suas angústias e frustrações e tenta sobreviver dentro do ambiente perverso em que se encontra, no qual é somente tratada por Frederic como um objeto de desejo. 
“Você quer a beleza para matá-la” – diz Miranda em um momento de desespero ao seu captor. Essa frase de efeito, assim como outras ficam na cabeça após o término surpreendente de O Colecionador. Um livro intrigante, que pode ser classificado como neo gótico e destaca-se pelo modo como o autor por meio dele consegue exprimir conceitos de arte, política e cultura, que remetem a uma época em constante processo de transformação.

 Cotação: ***** (excelente)

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Resenha: Carrie, a estranha (livro)


Este é o primeiro romance publicado de Stephen King e a história que explica seu surgimento é tão interessante que vale a pena ser conhecida. Ela é contada pelo autor em On Writing, - que também será comentado neste blog, delicioso livro, que mistura relato autobiográfico e manual, com dicas uteis para quem quer se tornar escritor. Sobre Carrie, a estranha, o autor relata que após ter escrito cerca de noventa páginas de seu manuscrito sofreu um bloqueio criativo e ficou empacado, sem saber como dar continuidade a historia que criou. King salienta que ficou tão irritado que jogou o texto datilografado de Carrie na lixeira. Felizmente, este foi resgatado a tempo por Tabitha, sua esposa e anjo da guarda – desconfio que ela é co-autora de muitos romances de King, principalmente, quando  ele estava enfrentando um período difícil quando estava viciado em álcool e drogas. Após ler o manuscrito, Tabitha achou que ele tinha potencial para se tornar um romance e sugeriu ao marido que fizesse alterações nele e também contribuiu com informações relacionadas à intimidade das mulheres – assunto que  King tinha muito pouco conhecimento. Posteriormente, Stephen King concluiu Carrie e enviou seu manuscrito com as alterações proposta por sua esposa para várias editoras. O resto é história - conforme dizem os americanos. Quando foi publicado em 1974, o livro de forma imediata se tornou um best-seller e, posteriormente, foi adaptado para o cinema.     
Devido ao filme dirigido por Brian De Palma ser tão bom  a ponto de ser considerado uma obra-prima do gênero do horror pela crítica especializada se torna difícil avaliar o livro de King. Ambos são muito parecidos no que se refere a trama: ela é praticamente a mesma e somente foram feitos alguns cortes e pequenas mudanças. O livro é centrado em uma adolescente tímida chamada Carrie White que é alvo constante de bullying na escola. As garotas de sua turma a hostilizam a tratam como se ela fosse uma aberração da natureza e isso piora quando a garota sofre sua primeira menstruação no vestiário feminino. Sem saber o motivo de seu sangramento (ela está menstruada pela primeira vez), Carrie acha que vai morrer enquanto suas colegas aproveitam sua reação desesperada para humilhá-la. Nesta passagem, King capricha na crueldade e coloca uma expressão vulgar na boca das garotas: “arrolha Carrie”, enquanto elas bombardeiam a menina com tampões e absorventes.


Carrie se assusta com o sangramento

Além de ser “saco de pancada” na escola, Carrie também come “o pão que o diabo amassou” com a mãe, Margareth White, outra criação notável de King, capaz de provocar genuínos arrepios de medo a cada aparição. Fazendo lembrar uma bruxa de contos de fadas, ela oscila entre a loucura e o sadismo, na maneira como trata sua própria filha, tornando Carrie uma pessoa solitária e infeliz. 


                         Margareth White a afetuosa mãe de Carrie

Vale ressaltar que Margareth é praticante de uma doutrina religiosa deturpada, na qual se destaca a figura de um deus vingativo e que não conhece o perdão. Os trechos mais assustadores do livro são aqueles que focam a relação problemática da garota com a mãe fanática religiosa e também aqueles que descrevem a sinistra decoração da casa em que habitam. King consegue criar um cenário apavorante e, até mesmo “gótico” em certa medida, no qual manifestações associadas ao sagrado – estátuas e pinturas religiosas são vistas pela perspectiva de Carrie (e do leitor) como repugnantes, capazes de despertar sensações de terror, o que constitui um traço de originalidade dentro da literatura de horror.

                            O "aconchegante" quartinho de Carrie

Também chama a atenção a marcante passagem do baile de formatura - Carrie é uma variação macabra de Cinderela!, em que a garota após passar por tantas humilhações e ser constantemente oprimida pela mãe, literalmente explode e demonstra sua revolta, por meio da manifestação de uma habilidade sobrenatural. Sobre ela não vou entrar em detalhes, uma vez que neste momento a narrativa atinge seu clímax, chocante e de grande impacto, mesmo na época atual. Basta dizer que o autor neste trecho de Carrie faz com que o real é “sobrenaturalizado”, por meio de uma assustadora e abrupta mudança na personagem, que também constitui uma inovação na exploração dos efeitos de horror.
Contudo, nem sempre King acerta na forma de narração do romance. Este é constituído por trechos de um livro que propõe uma explicação científica para a estranha natureza da protagonista, na qual também não entrarei em detalhes. Além de não me convencer, esta não acrescenta nada para o desenvolvimento da trama; pior “quebra” seu ritmo e antecipam situações que deveriam ser esclarecidas mais adiante. Também não foi uma boa ideia ter inserido trechos de outro livro, em que os estranhos eventos envolvendo Carrie são contados por Sue Snell, que soam artificiais e não acrescentam nada novo a história.
Embora estes trechos atrapalhem – talvez, este tenha sido um artifício empregado pelo autor  para tornar o livro maior e, assim ser mais facilmente publicado, eles não o prejudicam e este se mantém bastante assustador e, até mesmo inovador na maneira como o autor desenvolve sua narrativa a partir reprodução verossímil do ambiente do High School, no qual predominam o preconceito e a intolerância entre os adolescentes – dois elementos  que unidos dão origem a uma combinação bombástica no romance de King.
Apesar de estar inserido no gênero do horror, Carrie é um retrato cruel do que ocorre com aqueles que são rotulados como loosers (perdedores) nos Estados Unidos e a revolta da personagem central e seus efeitos devastadores antecipam o comportamento desajustado e auto-destrutivo dos jovens da cidade de Columbine, que resultou em banho de sangue.
Em seu aspecto metafórico, Carrie pode ser compreendido como uma metáfora sobre os devastadores efeitos provocados pelo bullying. No livro de King, as contínuas agressões sofridas pela protagonista, uma frágil adolescente geram sua terrível vingança contra tudo e contra todos. Nenhum autor conseguiu descrever tão bem o sofrimento e a dor experimentados durante o período da adolescência como Stephen King, - que também foi quando adolescente também foi excluído e marginalizado. Assim, a força de Carrie, a estranha está na maneira como sintetiza uma triste realidade em uma história triste e apavorante. Sem dúvida, é um clássico da literatura de horror e um livro que vale a pena ser lido mesmo para aqueles que assistiram ao filme de Brian de Palma, outro clássico no gênero.

(livro) : **** (muito bom)
(filme): ***** (excelente)


Diferenças entre o livro e o filme De Palma ( eu sugiro que você leia depois de ter lido Carrie e visto o longa, porque tem muitos spoillers)

No início de livro é relatado por moradores e pelo jornal local uma estranha chuva de pedras sobre a casa das White, que constitui a primeira manifestação do poder sobrenatural de Carrie. No filme, este evento estranho nem sequer é mencionado;

No filme, a sinistra estátua de um santo sintetiza muito bem a descrição de pinturas com motivos religiosos, além de antecipar o trágico destino da mãe da protagonista. O desenvolvimento dos personagens que transitam no ambiente do High School é melhor desenvolvido. De Palma dá ênfase para os preparativos para o baile, que são mostrados gradativamente. Neste trecho, o filme descreve o despertar sexual de Carrie, por meio de pequenos detalhes: a escolha do corte de vestido, o momento em que ela experimenta as cores de batom. Além disso, o acompanhante de Carrie no filme é mais sensível e aos poucos quando está na companhia da garota, começa a se interessar por ela. Isso dá mais força para o que irá acontecer durante o baile ressaltado o aspecto trágico a sequencia do banho de sangue e suas  terríveis consequências;


                A sinistra estátua do quartinho: não se parece com alguém?
                                   
Apesar da passagem do baile ser reproduzida de forma bastante fiel a do romance, por do inovador e ousado uso de duas câmeras que permitem visualizá-la com mais detalhes, chama a atenção o momento hithcokiano que antecipa o famoso “banho de sangue” de Carrie que foi reproduzido inúmeras vezes em outros filmes e novelas. É carregada de suspense e tensão, a sequencia (infelizmente, ausente no livro), em que Sue – personagem que ganha maior destaque no filme, descobre por meio de um traveiling muito bem feito aonde acaba o misteriosa corda que está escondida atrás do palco;

No filme, Carrie é mais ingênua que no livro. Ela não expressa o desejo de matar todos aqueles que a humilham. Além disso, no livro a personagem mata intencionalmente sua mãe parando seu coração enquanto que no filme ela faz isso para se proteger. No filme, Carrie transpassa o corpo de Margareth com vários objetos, de modo que se torne uma cópia grotesca da  apavorante estátua do santo que está no quartinho, onde a garota é mantida presa;

No livro, Carrie destrói toda a cidade. Ela impede que o incêndio na escola seja apagado controlando com mente os hidrantes, com o propósito de esvaziá-los. Além disso, ela provoca um curto circuito na rede elétrica, que resulta na morte de muitas pessoas. No filme, o poder de destruição da garota é demonstrado de forma parcial, embora de  maneira eficiente, por meio da cena em que ela sentindo-se culpada da morte da mãe provoca o desabamento de sua casa e morre soterrada;

O final do filme também é diferente e, até mesmo mais impactante que o do livro. No romance de King, Carrie morre em decorrência de um ferimento provocado por uma facada desferida por sua mãe. Antes de morrer, ela é encontrada por Sue perto de um bar, considerado um antro de pecado por sua mãe. Também vale destacar a última cena do filme De Palma, que pelo modo como foi realizada e, principalmente, pela reação que provoca no espectador, constitui um dos momentos mais marcantes no cinema de horror até a época atual

                  A cena final do filme de De Palma, que fez muita gente levantar da cadeira.

sábado, 13 de setembro de 2014

Conto: A Bruxa


Meu nome é Elizabeth Morrey e tenho vinte sete anos. Posso dizer que sou uma pessoa considerada normal. Sou casada com um advogado e tenho dois filhos saudáveis e bonitos: Melissa e Jack. Também posso dizer que me considero uma pessoa feliz: tenho uma boa casa, e, apesar de não exercer a profissão que escolhi – ser professora, estou satisfeita em ser dona-de-casa, embora não seja do tipo convencional. Somente fico coordenando o que a empregada faz, vigiando-a de perto, sem que ela perceba. Contudo, às vezes, geralmente, depois da meia-noite, uma lembrança do passado me tira o sono. Eu faço de tudo para esconder o efeito terrível que ela provoca em mim, mas meu marido quando me vê com olheiras no dia seguinte, me pergunta por que eu não consegui dormir. Nestes momentos, eu sempre dou uma desculpa e, por mais “esfarrapada” que ela seja, Thomas, meu marido acaba acreditando.
Mas, em determinados momentos, fica difícil suportar isso. O que aconteceu me apavora, fazendo-me me sentir uma maluca. Por isso, vou escrever sobre este estranho evento que aconteceu comigo quando eu tinha 10 anos, para tentar entendê-lo, embora não tenha certeza se vou conseguir. 
Nessa época, eu era uma menina magra, dentuça e, ainda por cima tinha as orelhas grandes. Por isso, rapidamente “ganhei” na escola o “fofo” apelido de “ratinha”. “Lá vem a ratinha”- ouvia os meninos dizendo enquanto eu andava pelos corredores da escola. Isso me deixava muito magoada, porque eu queria que eles me vissem como uma menina e não daquele jeito.  Eu também queria mostrar a eles, e, principalmente, para as outras meninas, que tinha peitos, e não o que chamava de tábua de passar-roupa. Para piorar minha já humilhante situação, eu não podia usar roupas parecidas como as das outras meninas e minha mãe insistia que eu me vestisse como um menininho: cabelinho curto, camiseta e calças cumpridas. Isto porque, sendo professora de antropologia, minha mãe acreditava que as pessoas do sexo feminino somente poderiam manifestar a sua sexualidade depois que menstruassem, e, isso infelizmente, naquela época estava longe de acontecer. Quando falava da minha vontade em ser igual a outras meninas da minha idade, meu pai que era técnico de informática em uma multinacional, ele agia de modo parecido que minha mãe:
-Não sei por que você quer ser igual a elas, que se comportam como se fossem mulheres adultas. Aproveite a infância, ela passa rápido.
Naquela época, parecia que eu estava condenada a passar a vida toda vestida de “Joãozinho” e ser chamada de “ratinha” pelos meninos e meninas da escola.
Um dia, depois da aula, voltei para casa de ônibus.  Nesta ocasião, eu estava pensando sobre qual seria a origem das mirabolantes histórias que costumava ler, principalmente, a de Branca de Neve que, no original era muito diferente do filme “fofo” da Disney. Quando, de repente, vi uma casa antiga que parecia ter saído de um conto de Edgar Alan Poe. Parecia ser muito grande e ocupava toda a esquina, muito diferente das outras casas daquela rua. Esta casa, para ser mais exata, uma mansão, era toda construída de tijolos vermelhos, que brilhavam quando a luz do sol se refletia neles e tinha um jardim na frente cheio de mato, o que demonstrava que estava abandonada há muito tempo. Apesar de ser bastante sinistro (e, hoje penso que talvez tenha sido isso), aquele lugar imediatamente exerceu sobre mim um irresistível poder de atração a ponto de fazer sinal para que o motorista parasse o ônibus na próxima esquina. Eu desci e corri na direção da antiga fachada da casa. Logo, notei que o portão de ferro corroído pela ferrugem era baixo e não tive muita dificuldade em pulá-lo. Caminhei pelo jardim abandonado, que para mim parecia com uma pequena floresta. Enquanto andava, pude sentir a grama arranhando minhas pernas. Apesar do medo de ser mordida por algum tipo de bicho, ou inseto, eu continuei minha exploração. É provável, que aquela sensação de delicioso perigo que eu experimentava naquele momento, tenha sido herdada de minha mãe que, antes de se casar tinha passado seis meses na África, convivendo com uma tribo de selvagens que praticavam canibalismo. 
Eu andei em direção à porta de entrada e tentei abri-la. Como já deveria ter adivinhado tratava-se de uma tarefa impossível, ainda mais devido a minha pouca força física. Fiquei meio frustrada, mas não desisti. Resolvi caminhar em direção a parte de trás da casa, na esperança de encontrar uma entrada. Lá, descobri o que parecia ser um alçapão. Mas, meu entusiasmo durou pouco: vi que o alçapão estava trancado com um grande cadeado. Olhei e constatei que as janelas ficavam a distância de muitos metros de altura de onde eu estava. Era impossível escalar as paredes que eram lisas e não tinham nenhum espaço onde eu pudesse me apoiar. Isso me deixou chateada e, por ter entrando nenhuma forma de entrar na antiga mansão, eu decidi voltar para casa. Estava andando no jardim, quando de repente senti o chão desaparecer dos meus pés. Naquele momento, ouvi somente um barulho e na sequencia, senti meu corpo despencar. Apesar da queda, percebi para meu alívio que nenhum osso do meu corpo estava quebrado, embora sentisse uma forte dor em um dos joelhos que tinha começado a sangrar. Olhei a minha volta e vi que estava em lugar escuro, que era iluminado somente por uma fresta de luz que entrava por um buraco. Também podia ouvir sons ameaçadores: eram chiados seguidos pelos arranhões, ou passos rápidos na velha madeira do chão de assoalho. Fiquei apavorada porque aquilo só podia significar uma coisa: ratos, que pelo barulho que faziam, deviam ser bem grandes.
Eu ia me levantar e, apesar da dor que sentia, tentar andar um pouco, quando ouvi o que parecia ser uma chave abrindo uma porta. Assustada, resolvi ficar naquele lugar mesmo, porque lá me sentia protegida pela escuridão. Então, a porta se abriu e uma pessoa curvada entrou arrastando o que parecia ser um enorme saco plástico. No lugar onde eu estava somente podia ver sua imagem “borrada”. Era uma mulher, alta e muito magra, que estava vestida com uma capa preta e, enquanto arrastava o saco plástico gemia, demonstrando que este deveria estar muito pesado.
-Não aguento mais fazer manutenção! Por que eu não nasci homem! Mesmo com a idade, eles não sofrem tanto quanto nós! – Sou obrigada a recorrer a isso quase o tempo todo para ficar jovem novamente. – dizia ela enquanto arrastava o saco plástico. Na sequencia, ela foi até um canto do porão e saiu de lá carregando objetos que imediatamente chamaram minha atenção: pequenos potes de vidro contendo diferentes conteúdos coloridos, alguns deles muito estranhos, uma gigantesca panela de barro e um punhal.
Então, ela pegou o punhal e abriu o saco plástico. Meu Deus! Como posso descrever o que tinha ali! Apesar das sombras, pude distinguir a fisionomia de um homem que me olhou com uma expressão de horror. Ele estava morto. Naquele momento, tive vontade de gritar, por isso tapei a boca com as mãos, sentindo meus dentes penetrarem fundo em seus dedos.
Então, a mulher começou a jogar o conteúdo dos potes de vidro dentro da grande panela de barro. De onde estava, pude perceber que eram coisas repulsivas, que me deram náuseas. Pareciam ser cadáveres de bichos e, até mesmo pude distinguir o parecia ser o feto de um bebê humano. Todas às vezes que alguma coisa era jogada no caldeirão de barro surgia um brilho intenso, que me deixava completamente cega durante alguns segundos.
Depois que todos os potes ficaram vazios, ela pegou o punhal e enfiou-o na garganta do cadáver. Neste instante, tive novamente vontade de gritar: parecia que estava dentro de um filme de horror, com a diferença que neste caso, eu era protagonista e minha vida estava em perigo. Mas, me controlei e o grito morreu na minha garganta.
Depois, ela pegou despejou o sangue no caldeirão de barro e mexeu. Novamente, um brilho intenso surgiu do nada, desta vez mais forte. Então, ouvi uma sinistra gargalha que ecoou por todo o sótão. Fiquei apavorada e me encolhi na esperança de que pudesse ficar menor e passar despercebida.
–Vou tirar isso, está me sufocando – disse a mulher fazendo um gesto que eu não acreditei. Era como se ela arrancasse o próprio rosto. Foi instante, que percebi que estava usando uma máscara.
Quando vi o seu verdadeiro rosto, levei um susto e, novamente tive vontade de gritar. Apesar de ter assistido a vários filmes e ter lido muitas histórias, com todo o tipo de monstro, posso afirmar que ela é a coisa mais pavorosa que já vi na vida. Não sei se posso descrever com exatidão com era aquela criatura: seu nariz era proeminente e parecia o focinho de um rato; suas orelhas e seus dentes salientes eram pontudos com os de um morcego e seus olhos eram oblíquos e se assemelhavam ao das cobras que eu costumava ver quando ia aos domingos com meu pai no jardim zoológico. Mais o pior de tudo é que ela era careca e sua cabeça tinha a forma de gigantesco e deformado ovo.
Vendo aquela aberração, além do pavor, constatei algo que me deu uma estranha sensação de felicidade: diante da sua feiúra, eu percebi que era bonita. Logo depois, a criatura mergulhou o cálice dentro caldeirão enchendo-o com um líquido viscoso. Em só gole, ela bebeu todo o seu conteúdo. Então, aconteceu uma coisa que eu também não vou me esquecer jamais: seu rosto começou a se contorcer com se fosse puxado por uma força invisível. Deveria doer muito.
Fiquei espantada quando vi que seu nariz e suas orelhas começaram a diminuir de tamanho, seus olhos aos poucos adquirem uma aparência humana e, acima de tudo sua cabeça começou a ficar menor e, por cima dela apareceu uma imensidão de fios de cabelos que a cobriu inteira em segundos!
Quando olhei com mais atenção não consegui esconder a surpresa e soltei um: Nossa! bem baixinho. A poucos metros de onde estava havia uma mulher que chamava atenção por sua aparência, daquele tipo que a gente costuma ver estampando capas de revista ou, em filmes sucessos de bilheteria.
 Na sequencia, ela arrancou a capa de couro e jogou de lado, revelando que usava um vestido apertado que realçava suas curvas, principalmente, os seios que balançavam dentro de seu decote fundo. Logo depois, ela pegou uma bolsa que estava jogada em canto e de dentro dela tirou um espelho:
-Espelho, espelho meu. Existe alguém mais linda do que eu? – perguntou a mulher falando aquela frase clichê que sabia de cor e que por brincadeira repetia algumas vezes no banheiro.
 -Você sabe que existe, Selena. Charlize Theron, Angelina Jolie, Jennifer Laurence, Scarlet Johanson são muito mais bonitas. Mas, devo dizer que você se encaixa dentro dos padrões de beleza e, por isso, é muito atraente para os homens. Mas, com certeza esta sua aparência não vai durar muito tempo e aí você vai ter que recorrer à manutenção de novo. – respondeu o espelho mágico, sem esconder o sarcasmo.
Diante deste comentário, Selena – era este o nome dela, ficou muito irritada. Por um momento, eu achei que ela pegar o espelho e reduzi-lo em cacos de vidro. Mas, para minha surpresa, ela o acariciou como se fosse uma criança, beijo-o e respondeu:
-Apesar da forma como me trata, eu não consigo viver sem você, amorzinho. 
Então, de repente, das sombras um rato apareceu e veio na minha direção. Não satisfeito com isso, ele subiu na minha perna, o que fez com que soltasse um grito.
Selena ficou furiosa. Ela avançou no sótão gritando:
-Quem está aí! Apareça, senão vai virar fumaça!
 Quando ouvi sua ameaça, me levantei e tentei correr. Mas, ela foi mais rápida e me agarrou pelos cabelos.
-Ora o que temos aqui: uma garotinha. Que beleza! Faz tempo que não tenho o prazer de degustar uma criança. Mas, que pena... você é tão magrinha, só tem ossos. Não importa. Sua carne misturada com legumes vai dar um bom guisado. Humm... que delícia, já estou com água na boca!
-Me solta, sua bruxa! – gritei com toda a força dos meus pulmões.
- Vejo que você é esperta. Acertou em cheio querida: eu sou uma bruxa. E como você pode ver eu existo de verdade.  Não sou uma fantasia de contos de fadas. E também já deve saber que meu nome é Selena. Agora chega! Vou dar um jeito em você agora, querida. – disse ela me segurando com tanta força que eu senti que a qualquer momento ela ia esmagar meu braço.
Neste instante, eu reuni as poucas forças que tinha e pisei no pé dela. Isso fez com que ela perdesse o equilíbrio e caísse como uma fruta podre no chão. Aproveitei a situação e corri, sem saber ao certo para onde ir. Vi a porta da frente aberta e fui à direção ao jardim. Selena correu atrás de mim, com impressionante velocidade. Em um gesto rápido, ela agarrou novamente meu braço e começou a me puxar de volta. Eu tentei escapar, mas seus dedos se prenderam em mim como tenazes.
-Se prepare minha querida para virar jantar de bruxa. – gargalhou ela.
Então, de repente, começou a chover muito forte. Neste instante, olhei para Selena. A pele molhada de seu rosto começou a se desfazer como se fosse feita de papel, revelando sua verdadeira e horrenda aparência. Desesperada, ela gritou, largando meu braço:
-Olha só que você fez sua pestinha! Estragou a minha manutenção!
 Na sequencia, ela entrou na casa e bateu violentamente a porta. Eu aproveitei e corri na direção da rua. Eu continuei correndo até chegar em casa. Quando cheguei percebi que estava ensopada. Naquela noite, tive uma febre alta muito e toda às vezes que fechava os olhos me via à mente a horrenda imagem da bruxa. Fiquei doente durante dias e, minha mãe foi obrigada a pedir uma licença da faculdade, onde dava aulas. Depois daquele dia, nunca mais consegui ler uma história dos irmãos Grimm ou, assistir filmes de horror. Eu tentei algumas vezes contar o que aconteceu aos meus pais, mas sabia que eles não iriam acreditar e, com certeza achariam que tudo tinha sido um delírio provocado pela minha fértil imaginação infantil. No entanto, eu sabia que estava certa. A prova de que tudo tinha sido real, logo apareceu: uma notícia divulgada por jornais e revistas que comentava sobre o misterioso desaparecimento de um excêntrico milionário dono de fábrica de linguiça. Quando vi sua imagem imediatamente eu o reconheci: era o homem morto que estava dentro do saco plástico no sótão da casa abandonada.
Passado algum tempo, meu pai recebeu uma proposta para trabalhar em outro país, por isso nos mudamos, da fria Londres, capital da Inglaterra, para a ensolarada Califórnia nos Estados Unidos, onde conheci meu futuro marido. Mas mesmo assim, depois de tantos anos, ainda tenho receio que Selena queria se vingar de mim, ou pior vingar-se nos meus filhos. É por isso que ás vezes, sempre depois da meia noite, de forma que eu não consigo explicar, vejo seu horrendo rosto me observando nas sombras. Também fico atenta quando passo perto de uma banca de jornal ou, vejo um anúncio de televisão para ver se consigo reconhecê-la em uma alguma atriz famosa. Mas, acima de tudo, eu não deixo meus filhos andarem sozinhos de ônibus, nem mesmo para ir à escola. Eu sempre estou com uma desculpa na ponta da língua: bullyng, gripe,  outro tipo de vírus infeccioso, um pedófilo que tinha sido visto dirigindo uma vã preta a alguns metros na vizinhança.  Eu fazia uso de um repertório variado de desculpas para leva-los e busca-los de carro, visando ter controle pleno sobre eles o tempo todo. O problema é que Melissa está agora com dez anos e, assim como eu e minha mãe já demonstrou que gosta de sentir o que chamei de deliciosa sensação de perigo.

Outro dia, quando fui entrei em seu quarto, descobri antigos filmes de horror, todos eles ambientados em castelos e casas mal assombradas. Além disso, ela gosta dos contos dos irmãos Grimm, sob a alegação de que eles não são tão “água com açúcar” como os outros. Eu logo descobri que o conto de Branca de Neve é seu preferido, mas ao contrário do imaginava, Melissa acha a rainha mais interessante do que a protagonista, que para ela é somente uma garotinha boba, medrosa e chorona. Tão interessante, que aguçou o interesse de minha filha por adquirir certos tipos de conhecimento. Hoje descobri que Melissa estava fazendo uma pesquisa na internet sobre práticas de bruxaria e aparições de bruxas em vários locais do mundo. E isso me deixou muito preocupada. 

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Resenha: Misery -Louca obsessão, de Stephen King (livro)



Se tivesse que resumir este livro de Stephen King em uma palavra esta seria assustador. Apesar de não haver fantasmas, criaturas e eventos sobrenaturais, seres vindos de outro planeta ou de outra dimensão, Misery (que no Brasil ganhou o subtítulo de Louca obsessão devido ao filme de mesmo nome) é até o momento a obra de King que me deixou mais apreensivo e até mesmo angustiado e bastante tenso em muitos momentos. Acredito que tais sensações foram causadas em mim, porque a situação pela qual passa o personagem central poderia acontecer no mundo  real. 

               
                                              Stephen King


Misery tem a mesma premissa que O Colecionador, de John Fowles,  um romance que eu não li (minha referência dele é sua adaptação para o cinema), na qual uma pessoa é mantida prisioneira por outra em um lugar ermo e afastado da cidade. No entanto, Misery não me parece ser uma imitação do livro de Fowles. Embora, King tome emprestado o mote criado pelo autor inglês, ele o desenvolve de maneria diferente, visando tratar de um tema que aparece em suas principais obras: o bloqueio criativo que se torna uma causa de horror e até mesmo conduz o personagem central ao desespero e a insanidade, que remete ao título do livro (misery, palavra usada para se referir a alguém que passando por um intenso sofrimento)
A história se inicia quando o protagonista, um escritor de sucesso chamado Paul Sheldon ( este sobrenome não é familiar?) acorda um lugar que não conhece na companhia de uma mulher que diz ser sua fã número um. Aparentemente, Annie Wilkes é bastante atenciosa e sendo enfermeira de formação abriga e auxilia Paul em sua casa, localizada uma região montanhosa, depois que ele sofre um acidente. Contudo, desde o primeiro momento em que vê Annie, ele sente uma estranha sensação de terror que é transmita ao leitor por meio da forma como King a descreve, denotando que existe algo de muito errado com ela. Apesar de não ser descrita como uma criatura monstruosa, Annie é vista por Paul (e pelo leitor) como um ser ameaçador e até mesmo repulsivo, que lhe provoca uma contínua sensação de desconforto.

Annie Wilkes: a fã número um de Paul

A impressão negativa de Paul sobre essa mulher aumenta quando ele ingenuamente confessa a ela o destino da protagonista de uma série de romances considerados comerciais e apelativos, que são venerados e considerados verdadeiras preciosidades na perspectiva de Annie. Ao saber disso, ela começa a demonstrar sinais de descontrole emocional e exige que Paul refaça seu novo livro mediante chantagem e ameaça. Intimidado por Annie, ele tenta escrever e aí começa seu suplício, uma vez sua mente está em branco e isso se torna um grande problema para ele.

     A dedicada Annie cuidando de Paul com carinho: até quando?


A partir daí é melhor não revelar mais nada do que acontece com Paul e sua fã incondicional, Annie Wilkies.  Somente posso dizer que ela é uma das piores vilãs na galeria de personagens sinistros saídos da imaginação de King e, por isso, uma de suas melhores criações. Mesmo tendo visto a adaptação de Misery para o cinema - que deu a Kathy Bates, um merecido Oscar na categoria de melhor atriz, fiquei surpreso positivamente com seu texto original.Embora, o filme seja muito bom, um dos melhores no gênero terror/suspense, o romance que deu origem a este é bem mais apavorante e tem momentos de horror que são capazes de gelar o sangue. 
Além de ser um livro  capaz de assustar e prender a atenção do leitor todo o tempo, Misery assim como O Iluminado também chama atenção por suas várias referências a literatura - mais uma vez, King em sua escrita presta homenagem a Edgar Allan Poe, a cultura pop em geral e, principalmente, por seu aspecto metalinguístico.
Em Misery, King também propõe uma  discussão sobre as dificuldades enfrentadas durante o processo de criação de um texto literário, no qual o chamado "branco" é causa de constante pavor para quem se dedica à escrita literária. Além disso, Annie Wilkes incorpora dois lados contraditórios do leitor: o senso crítico apurado e a admiração exagerada por seu autor favorito.
No romance, King também aproveita para dar alfinetadas nos críticos literários que só valorizam a chamada "alta literatura" e no mercado editoral que obriga os autores a produzirem livros como se fossem máquinas de escrever automáticas. Além disso, King defende a ideia que é justamente nos momentos de aperto que são criadas as melhores obras. Para autor é necessário que haja tensão e até mesmo uma certa carga de stress sobre o autor para ele possa produzir um texto de qualidade. 
Bastante envolvente, com uma narrativa bem elaborada formada por duas tramas  que acontecem  simultaneamente e com uma vilã capaz de provocar pesadelos, Misery é um livro que consegue assustar e também propõe questionamentos acerca do exaustivo e, até mesmo frustrante processo de criação literária.
Misery é uma das obras-primas de Stephen King, uma vez que o autor conseguiu criar um livro sem "gorduras" e que se lê com prazer e até mesmo com uma certa dose apreensão. Trata-se de um romance gótico moderno e inventivo, em que o horror surge a partir de uma situação que poderia acontecer com qualquer autor, até mesmo com King que apesar de ser um mestre do sobrenatural, tem conhecimento que o mundo real esconde acontecimentos mais assustadores do que aqueles que são descritos em livros de ficção.
cotação: ***** (excelente)


OBS.: Após ficar mais de vinte anos fora do catálogo, o livro de King foi relançado em uma edição decente no selo Suma de Letras, da editora Objetiva. Esta edição tem capa cartonada e acredito que a tradução não tenha muitos erros, embora tenha encontrado pequenos erros na ortografia (faltas ou junção de palavras), mas isso não atrapalhou a minha leitura.




terça-feira, 9 de setembro de 2014

As várias faces de Drácula nas telas de cinema


Quando se ouve a palavra Drácula vem à cabeça a imagem de um homem vestindo uma capa preta, com os cabelos engomados e penteados para trás e um sorriso maléfico nos lábios, sempre envolto por uma espessa névoa. Ou, em uma época mais recente, na versão gótico-romântica dirigida por Francis Ford Coppola, Drácula inicialmente aparece como um ser de aparência andrógena, em que se sobressai visíveis traços de sua degeneração. Contudo, após ingerir sangue humano, ele volta a ser jovem e vestindo-se e, principalmente, se comportando como dândi passa a frequentar lugares públicos da cidade de Londres e cortejar a jovem Mina, que vem a ser a encarnação de sua falecida esposa.
Esta é apenas uma pequena demonstração das várias faces de Drácula em suas adaptações cinematográficas. Mas, antes que se possa comentar um pouco sobre as metamorfoses de Drácula no cinema, é necessário comentar um pouco sobre a provável origens desta importante obra, apesar de não ter sido a primeira obra a explorar a figura do vampiro, sem dúvida foi aquela que contribui para sua popularização e permanência no âmbito literário.
A palavra Drácula tem sua origem no idioma eslavo e significa “filho do dragão”, a qual remete à Draculea, uma estirpe de nobres que dominaram território da Valáquia, (atualmente, Hungria), localizado na região da Transilvânia e que eram conhecidos e temidos por sua crueldade. Dentre eles, o príncipe Vlad Tepes é apontado como provável modelo usado pelo autor irlandês Bram Stoker (1847-1912) para a criação do Conde Vampiro.


Bram Stoker

De acordo com as lendas populares, Vlad Tepes costumava se alimentar banhando o pão no sangue de seus inimigos enquanto eles eram executados por meio da empalação, o que resultava em mortes violentas e dolorosas. É   provável que o “gosto” pela violência, sangue e morte do cruel príncipe valaquiano tenha contribuído de forma significativa para que sua imagem ficasse associada a de uma criatura mítica, o vampiro também conhecido pelos eslavos como nosferatu ou strigoi, que se destaca no folclore popular do Leste Europeu e que de algum modo permanece vivo até a época atual. Além disso, também de acordo com relatos folclóricos, algum tempo após seu sepultamento, o corpo de Tepes sumiu misteriosamente e isso fortaleceu sua inserção dentro da esfera do sobrenatural. 
Vale ressaltar que na Romênia, país que anteriormente fazia parte da Valáquia, Vlad Tepes mesmo na época atual é considerado um herói nacional, uma vez que impediu que esse lugar fosse invadido e dominado povo mulçumano. 
De acordo com estudiosos do romance, é possível que durante a escritura de Drácula, que se tornaria a única, apesar de imortal obra-prima de Stoker e um dos livros mais importantes e influentes do final do século XIX, seu autor teria somente se apropriado dos mais sinistros aspectos da turbulenta e violenta personalidade de Vlad Tepes e as teria aproveitado para criar o personagem central de sua narrativa, Drácula. Ainda de acordo com aqueles que estudam o livro, inicialmente, o vampiro seria chamado de Vamphir, mas durante o processo de sua elaboração, Stoker resolveu mudar seu nome para Drácula, porque o achou mais sonoro e pouco mais sinistro. 

    Vlad Tepes: o verdadeiro Drácula

É importante esclarecer que o Drácula descrito no romance tem muito pouco dos outros Dráculas imortalizados pela arte cinematográfica. No texto original, ele aparece como um homem de aspecto totalmente repulsivo e sua aparência não lembra em nada um galã de filme de Hollywood. Quando Mina descreve Drácula a primeira vez que o vê passeando por Londres e de olho no pescoço de uma moça, ela enfatiza seus lábios cruéis, o nariz aquilino, a magreza e, principalmente, sua extrema palidez. Ou seja, o “Drácula literário” se fosse transposto com toda fidelidade provavelmente teria uma existência curta nas telas de cinema.
Além disso, é importante enfatizar que o romance de Stoker aparentemente é “infilmável”. Sua estrutura narrativa é toda fragmentada constituída a partir de diferentes tipos de relatos (cartas, diários, recortes de jornal e, até mesmo diários de navegação e relatórios científicos) narrados sob diferentes pontos de vista e, assim em nenhum momento temos completo acesso à mente do personagem principal: Drácula.
Isso cria um efeito interessante: o Conde vampiro não narra e durante todo o tempo em que transcorre a narrativa, ele é “narrado”, ou seja, tudo que ficamos sabendo sobre Drácula é construído a partir de impressões de outras pessoas, principalmente, por meio do olhar peculiar de Jonathan Harker, que oscila entre vê-lo ora como um nobre decadente, ora um ser diabólico e com poderes sobrenaturais. Grande parte dos eventos de maior impacto descritos na obra, tais como quando Jonathan é “beijado” pelas vampiras que habitam o castelo de Drácula, ou o vampiro ataca e vampiriza Lucy ocorrem em uma atmosfera onírica, que mistura sonho e pesadelo, em que pela forma de narração adotada não é possível separar o que é real do que é imaginário.
É importante enfatizar que em seu romance Stoker privilegia mais o clima de mistério, carregado de tensão e suspense, principalmente, no capítulo que descreve a chegada de uma monstruosa e misteriosa criatura à praia de Whitby – que, posteriormente é revelado ser o próprio Drácula -, do que as cenas de terror, embora, elas possam ser consideradas até hoje de grande impacto visual devido à descrição em detalhes de atos de violência – a execução de Lucy com uma estaca é um exemplo e que até então era pouco explorada nos textos góticos.
A partir dessas afirmações sobre a intricada estrutura narrativa de Drácula é possível comprovar que adaptá-lo para o cinema consiste em uma tarefa difícil, porque demanda que algumas de suas passagens sejam deixadas de lado em favor de uma melhor fluidez e da coerência dentro de uma linguagem cinematográfica.
Por isso, diretores e roteiristas de diferentes épocas buscaram cada um a sua maneira tentar preservar aspectos que consideravam mais atraentes na trama criada por  Bram Stoker.
O primeiro filme baseado em Drácula é uma releitura da obra original de Stoker que, embora não autorizada, se apropria somente de alguns de seus principais elementos, principalmente, os que integram sua primeira parte. Segundo o crítico cinematográfico David Skal em Nosferatu: uma sinfonia de horrores (1921), realizado pelo cineasta alemão F. W. Murnau pode ser encontrado o vampiro que mais se aproxima do mítico personagem criado por Bram Stoker.  Este filme que se tornou um clássico do expressionismo alemão é reconhecido até a época atual por ter estabelecido as características que definem o gênero do horror cinematográfico. Nele, destaca-se a figura repulsiva do vampiro, que devido à recusa da viúva de Stoker em ceder os direitos autorais, é chamado de Conde Orlok em vez de Drácula e cuja dantesca aparência mistura vários tipos de animais predadores e aparece associado a transmissão da Peste Negra, doença infecciosa que matou milhões de pessoas na Europa durante a Idade Média. Assim como a criação de Stoker, Orlock habita um castelo em ruínas e após negociar a compra de a antiga propriedade (a ação é transposta de Londres para a cidade alemã de Wismar) mantém o jovem Jonathan como seu prisioneiro. Também da mesma forma que Drácula, o vampiro assim que chega à cidade começa espalhar a morte entre seus habitantes.   
Apesar de trazer as marcas do tempo, o filme de Murnau ainda impressiona por sua sofisticação técnica, embora obtida por meio de recursos que se revelam bastante simples. Dentre suas imagens, destacam-se a assustadora floresta de árvores espectrais que balançam em torno do castelo enquanto o assustado Jonathan Harker se aproxima dele e também o momento em que Orlock aparece pela primeira vez com seu rosto horrendo e contribui para torna-lo um dos monstros mais assustadores do cinema. Além dela, também preservam o impacto visual as cenas em que o vampiro é mostrado se movendo em uma velocidade frenética, ou por meio de planos ligeiramente enviesados que produzem uma constante sensação de ameaça e de terror. Também é importante enfatizar o momento, um dos mais assustadores do cinema de horror, no qual somente é mostrada a imensa e disforme sombra de Orlock  que se alastra pelas paredes que lentamente se aproxima de sua vítima. Uma cena tão poderosa em seu aspecto imagético que se tornaria iconográfica e, posteriormente seria revista no filme de Francis Ford Coppola nos anos noventa. 

Nosferatu: o primeiro Drácula do cinema  

Drácula ressurgiria no início dos anos trinta, encarnado no ator húngaro Bela Lugosi que, depois do lançamento dessa versão cinematográfica, teria sua imagem para sempre associada a do vampiro – uma associação que durou até sua morte em decorrência de seu vício em heroína. O filme em sua época foi um grande sucesso de bilheteria e também estabeleceu as bases do horror gótico nos Estados Unidos proporcionando o início de um ciclo de filmes desse gênero que também é constituído por outras adaptações de clássicos da literatura, tais como Frankenstein e O Médico e o Monstro.
Um dos motivos do sucesso do filme é a presença marcante de Lugosi como Drácula que, apesar de não ser um galã tinha um forte sotaque estrangeiro e conseguiu criar um clima de mistério e sedução em torno do personagem, capaz de provocar no espectador um misto de atração e repulsa, que mesmo na época atual permanece com um importante componente para manter a figura do vampiro viva no cinema.

       Bela Lugosi, um dos mais famosos Dráculas da história do cinema.

No entanto, apesar do talento do diretor norte-americano Tod Browning para explorar o ambiente sinistro e decadente do imenso cenário do castelo de Drácula que pode ser admirado por sua horrível beleza e no qual  predomina o jogo de luz e sombra que remete ao cinema expressionista, Drácula é um filme com pouca ação e, em determinados momentos, os diálogos entre os personagens são canhestros e muitas cenas de forte impacto da obra original são deixadas de fora, sem que o espectador tenha acesso a elas. Também houve a redução (e muito) da conotação erótica de algumas cenas do romance, embora, uma versão do mesmo filme falada em espanhol e voltada para o público latino tenha preservado uma grande carga de sensualidade, nas cenas em que Drácula seduz suas vitimas e, até mesmo no figurino ousado da mocinha que não é Mina e, sim sua melhor amiga, Lucy, interpretada pela bela atriz mexicana Lupita Tovar.


Versão espanhola de Drácula

Assim, passagens importantes do romance de Stoker, destacando-se aquela em que Drácula é aparentemente morto por seus inimigos não aparecem no filme e somente sugeridas por meio das falas de Abrahan Van Helsing, um personagem que tem sua participação reduzida somente aparece em momentos cruciais enfatizando a necessidade de combater e, principalmente, exterminar o vampiro.
Estas falhas que reduzem um pouco sua importância de Drácula no cinema de horror se justificam pela origem de seu roteiro e por seu complicado processo de produção. O filme é uma adaptação de uma peça teatral parcialmente baseada no romance de Stoker, que foi apresentada com grande sucesso em um teatro na Broadway e tinha Lugosi como protagonista. Drácula na época em que chegou aos cinemas sofreu problemas com código de censura que impunha à época um rígido controle sobre todas as produções cinematográficas realizadas nos Estados Unidos e que visava abolir qualquer tipo de conteúdo que julgasse ser obsceno ou que pudesse agredir a moral e os bons costumes da família americana.
Mesmo tendo problemas no ritmo e na direção de algumas cenas, essa versão de Drácula realizada nos anos trinta na época atual mantém o status de clássico do horror gótico, embora grande parte desse mérito seja atribuído a caracterização inesquecível de Bela Lugosi, que contribui de forma significativa para transformar o vampiro em um mito também na arte cinematográfica.  
O mítico personagem criado por Stoker somente reapareceria quase trinta anos depois em um filme que, de acordo com grande parte dos críticos de cinema, é aquele que soube aproveitar melhor os elementos do romance e também possibilitou que o cinema de horror ganhasse fôlego e voltasse em grande estilo: Drácula: o vampiro da noite (1957).  


                 Christopher Lee considerado o melhor Drácula  do cinema

Realizado pela produtora inglesa Hammer, que posteriormente, viria a se tornar uma verdadeira fábrica de monstros e, também ressuscitou Frankenstein e O Médico e o Monstro, esta produção apesar de seu baixo orçamento tem sua importância reconhecida pelo modo como retoma a atmosfera gótica da trama Stoker e, principalmente, por ter dado uma nova configuração ao gênero do horror que a partir deste filme mostra cenas explícitas de  violência, nas quais aparecem fartas doses de sangue, que se destaca por sua intensa coloração vermelha.
Interpretado com eficiência e carisma pelo ator inglês Christopher Lee, Drácula aparece como um homem taciturno que se comunica com poucas palavras, mas que em um determinado momento revela ser um vampiro em uma cena emblemática que, posteriormente também se tornaria iconográfica na filmografia do horror, na qual ele aparece com os olhos inflamados de sangue, e, por sugerir contaminação é capaz de criar um efeito assustador. Este Drácula também investe na sensualidade, uma vez que o vampiro é capaz de exercer sobre suas vítimas, todas elas do sexo feminino, uma espécie de transe hipnótico quando olham diretamente para ele. Nas cenas em que Drácula as ataca, o momento da mordida é somente sugerido, por meio de imagens de janelas fechadas, o que evoca intimidade e fornece ao filme uma forte conotação sexual. O Drácula de Lee assim como tinha sido o de Lugosi é uma espécie de versão pervertida de Dom Juan que consegue conquistar as mulheres e, assim desperta o ódio nos homens. Contudo, Lee por meio de sua composição, em que se destacam os gestos e olhares maliciosos, consegue tornar Drácula mais misterioso, sinistro e, por isso, mais ameaçador. Também neste filme o aspecto sensual do livro de Stoker é enfatizado por meio da presença de mulheres recatadas que após serem mordidas pelo vampiro se tornam agressivamente sensuais - essa mudança radical é representada pela mudança de figurino, uma vez que elas aparecem com roupas que acentuam os seios por meio de generosos decotes-, e a partir de então elas passam a ameaçar transformar seus parceiros em vampiros, realçando assim o forte apelo erótico do filme, que à época fez com este se tornasse um sucesso entre o público jovem.
Também é importante enfatizar que nesta versão enquanto Drácula assume sua faceta mais sensual e agressiva, seu adversário o Dr. Van Helsing é totalmente o oposto. Ou seja, ele é frio, isento de emoções e puramente racional. Interpretado por Peter Cushing com certa dose de humor britânico o inimigo do Conde Vampiro age à maneira de Sherlock Holmes e procura justificar por meio de explicações científicas os eventos sobrenaturais, inclusive a suposta transformação de Drácula em morcego.
No filme, Van Helsing inicia uma perseguição implacável ao vampiro que tem objetivo destruí-lo, motivado principalmente, pelos atos transgressivos de Drácula, destacando-se dentre eles, a sedução de mulheres casadas, que ameaçam a continuidade do comportamento de acordo com as regras impostas pela sociedade britânica. Dessa forma, esta produção reflete bem o período, no qual Drácula representa a liberdade sexual enquanto seu inimigo, Van Helsing remete ao conservadorismo e a manutenção do casamento, ou seja, duas pulsões que entram em choque e disputam o controle sobre o indivíduo, o qual oscila entre satisfazer sua vontade, ou então submeter-se as regras sociais e morais.
O filme preserva um pouco a parte final do romance de Stoker reproduzindo a cena em que Drácula perseguido por seus inimigos busca refúgio em seu castelo. Contudo, ao chegar lá, o vampiro é destruído pela ação da luz do sol, - elemento esse que tem sua origem na transposição do texto de Stoker para o teatro, o que posteriormente viria a tornar-se um clichê em filmes sobre vampiros.
Apesar de tomar muitas liberdades que o distanciam do texto original, essa produção e dirigida com habilidade e estilo por Terence Fisher e também contribui de forma significativa para dar uma nova imagem a Drácula e também preservar o interesse pelo romance de Stoker.
Após um período de sumiço nas telas de cinema, durante os anos noventa, Drácula ressurgiria em nova roupagem em filme que procurou criar uma aproximação maior com o romance que lhe deu origem e também buscou renovar o antigo e desgastado mito do vampiro. Esta produção cinematográfica até mesmo no título procurou destacar sua fidelidade à obra original: Drácula de Bram Stoker.

                          

Contudo, essa versão também não é totalmente fiel ao romance e insere novos elementos a sua trama, destacando-se dentre eles, um prólogo, no qual procura estabelecer um vínculo com o verdadeiro Drácula, o príncipe romeno Vlad Tepes e um desfecho diferente, que provocou polêmica na época de seu lançamento. No filme, Drácula é descrito como uma espécie de herói trágico cujas características, principalmente, a rebeldia, remete aos personagens que aparecem nos dramas byronianos e seu aspecto rebelde também o associa a um mito romântico: Fausto. Logo no início, Drácula que é descrito como um nobre que tenta impedir o avanço de um exército de mulçumanos, toma conhecimento que Elizabeta, sua esposa cometeu suicídio, por acreditar que ele tinha sido morto em uma emboscada. Diante disso, Drácula parte para o castelo, onde fica sabendo que sua mulher por ter cometido suicídio condenou a alma dela ao Inferno. Revoltado, Drácula rompe com Deus e faz um pacto diabólico com as forças do Mal. É partir desse evento transgressivo que ele se transforma um vampiro – que até então não tinha explicado em nenhuma outra versão de Drácula para o cinema.  e para sobreviver necessita consumir sangue humano. A partir daí, a trama retoma o início descrito no romance.
O filme também procura se aproximar da obra original por meio de cenas em que os personagens falam por meio de uma narração em off e escrevem suas ações em diários. A passagem do livro que descreve a chegada de Jonathan Harker ao castelo de Drácula é fielmente reproduzida no filme até mesmo em sua contínua atmosfera de terror. A aparição de Drácula é outro ponto alto desta versão: o vampiro aparece como um velho decrépito, vestido em uma roupa em um intenso tom de vermelho-sangue, cuja longa cabeleira branca e as unhas afiadas contribuem para lhe dar uma aparência andrógena e assustadora. 


 Drácula como um velho repulsivo

Além disso, pela primeira vez é reproduzida na íntegra e sem cortes, a cena em que Jonathan Harker é seduzido pelas misteriosas vampiras  que habitam o castelo de Drácula.  Nela, ressalta-se o ambiente decadente, o uso de tons monocromáticos de azul e, novamente, o vermelho escarlate - que faz lembrar a estética dos filmes de terror dirigidos pelo maestro Mário Bava, e, principalmente a presença de belas mulheres que remetem a arquétipos da sensualidade feminina, tais como a sereia, a odalisca e a Medusa, que simbolicamente representam à sensualidade feminina latente e até mesmo perigosa, devido ao seu aspecto destrutivo. Assim, este filme dirigido por Francis Ford Coppola consegue reproduzir com grande fidelidade uma das passagens mais importantes e sensuais da obra original de Stoker que até então não tinha sido criada de forma integral em nenhum outro filme baseado em Drácula. Do mesmo modo que no romance, essa termina com a entrada repentina de Drácula no quarto que quando vê Jonathan sobre o domínio de suas noivas e o reinvidica para si por meio da clássica fala do livro: “- este homem me pertence”, além de dar a elas um prêmio de consolação - o saco contendo um bebê-, capaz de provocar uma genuína sensação de horror.


O beijo "meigo" da vampiras

Drácula de Bram Stoker também retoma a repressão sexual sugerida no romance de Stoker. É muito interessante a cena que faz uma referencia ao Kama Sutra, o mais antigo manual de práticas sexuais para demonstrar a sensualidade aflorada de Lucy, que atrairá Drácula como um imã. Dessa forma, de modo semelhante a obra de Stoker, o filme promove a combinação entre o ato sexual e a contaminação, que remete diretamente a epidemia da Aids que se alastrou na mesma época em que este foi lançado nos cinemas.  
Em, Drácula de Bram Stoker a referência a esta doença epidêmica que matou milhares de pessoas nos anos noventa, pode ser encontrada de forma simbólica no doloroso processo da transformação de Lucy em uma criatura vampírica, no qual são enfatizadas sua dificuldade de respirar e a gradativa degeneração de seu corpo. Pela primeira vez em uma versão de Drácula para o cinema, os sintomas dessa personagem que culminam em sua metamorfose são descritos da mesma maneira que na obra original. Além disso, no filme de Coppola também merece destaca a passagem em que Lucy é executada por seu noivo no interior da câmara mortuária que também é reproduzida com grande fidelidade.


Lucy transformada em vampira

Contudo, apesar de reproduzir pela primeira vez e na íntegra os principais trechos do romance de Stoker, o filme de Coppola, assim como as versões anteriores, ousou ao criar um relacionamento amoroso entre Drácula e Mina, que não é um elemento novo e tinha sido amplamente explorado em outra versão do romance de Stoker feita para televisão, que foi lançada em 1973 e também foi retomado em outro filme sobre o vampiro da Transilvânia produzido em 1979. Vale ressaltar que nessa produção dirigida por Coppola é o desejo intenso de Drácula de rever sua amada, que constitui a sua motivação para sair de seu exílio no castelo e ir para Londres visando encontrá-la. Ele terá sucesso nesta busca, uma vez que reconheceu a reencarnação falecida esposa Elizabeta em Mina, a noiva de Jonathan Harker.
Assim, em Drácula de Bram Stoker é ressaltado, talvez, de modo um pouco excessivo, o aspecto romântico do personagem central, Drácula que apesar de agir de modo semelhante aquele descrito no romance, também se faz passar por um misto de dândi e príncipe encantado que faz tudo para conquistar o amor do “duplo” de sua amada.

Dácula e Mina

É importante salientar que a atração entre Drácula e Mina surge durante um encontro inesperado em um cinematógrafo – equipamento percursor do projetor de cinema, no qual são exibidos filmes eróticos, reforçando a associação entre o vampirismo e o desejo reprimido, frustrado pelas convenções sociais. Além disso, o Drácula do filme de Coppola também remete a importantes personagens da literatura gótica do final do século XIX, tais como Dorian Gray e o Dr. Jekyll, que possuem uma personalidade conflitada dividida entre o Bem (representada no longa pelo amor verdadeiro que ele nutre por Mina) e o Mal (sua transformação  em um vampiro que suga o sangue de suas vítimas). Também dentre os heróis da literatura romântica, Drácula se assemelha a Heathcliff, o protagonista de O Morro dos Ventos Uivantes, uma vez que ressurge do passado para reinvidicar o amor de sua amada que está reencarnada no corpo de Mina. Ou seja, no filme, Drácula é motivado por um sentimento tão forte e sublime em sua natureza que é capaz de desafiar os limites entre a vida e a morte, assim como as rígidas convenções sociais da sociedade vitoriana. Por último e não menos importante para a trama, o filme também promove a ligação de Drácula com outro personagem mítico e que era admirado pelos autores românticos: Satã, de Paraíso perdido. No filme de Coppola, durante a emblemática cena em que Drácula enfrenta seu inimigo, Dr. Helsing, o vampiro assume a aparência de um ser diabólica, na qual destacam as asas de morcego e a horrenda face, remetendo assim a imagem iconográfica do adversário de Deus.

Drácula como um ser demoníaco

Apesar de reproduzir com fidelidade o trecho em que Drácula é perseguido pelos inimigos até seu castelo na Transilvânia, essa versão cinematográfica tem seu epílogo com uma cena cartática, na qual o Conde Vampiro é redimido de seus pecados e atos cruéis por meio do amor de Mina, que novamente evoca uma passagem de Fausto, de Goethe, na qual o personagem principal é salvo pelo forte sentimento que sua amada Margarida nutre por ele.
Dessa forma, novamente, no filme de Coppola se sobressai o aspecto romântico, que destoa do final original descrito por Stoker, o qual sugere a possibilidade de que os eventos sobrenaturais descritos pelos personagens e que comprovariam a existência de Drácula e de outros vampiros podem ter sido apenas alucinações produzidas pela imaginação deles.
Apesar da trama de Stoker ter sido várias vezes adaptada para o cinema teatro e outras formas de expressão artística, dentre elas, a Hq e, até mesmo  ballet, esta não foi reproduzida conforme está descrita no romance de Stoker. Talvez, isso aconteça devido a sua estrutura narrativa fragmentada e intricada, na qual Drácula aparece até pouco e mantém como um personagem misterioso mesmo após seu desfecho.
Mas, isso não impediu que fosse criado um novo mito: o vampiro cinematográfico que em diferentes épocas ressurge das sombras em novas e ousadas configurações, que de alguma forma procuram estabelecer algum tipo de aproximação com o Conde Drácula, a imortal criação de Bram Stoker, que após tanto tempo de seu surgimento continua exercendo seu grande poder de fascínio entre espectadores de cinema e leitores de diferentes gerações.