Meu nome é Elizabeth Morrey e tenho
vinte sete anos. Posso dizer que sou uma pessoa considerada normal. Sou casada
com um advogado e tenho dois filhos saudáveis e bonitos: Melissa e Jack. Também
posso dizer que me considero uma pessoa feliz: tenho uma boa casa, e, apesar de
não exercer a profissão que escolhi – ser professora, estou satisfeita em ser
dona-de-casa, embora não seja do tipo convencional. Somente fico coordenando o
que a empregada faz, vigiando-a de perto, sem que ela perceba. Contudo, às
vezes, geralmente, depois da meia-noite, uma lembrança do passado me tira o
sono. Eu faço de tudo para esconder o efeito terrível que ela provoca em mim,
mas meu marido quando me vê com olheiras no dia seguinte, me pergunta por que
eu não consegui dormir. Nestes momentos, eu sempre dou uma desculpa e, por mais
“esfarrapada” que ela seja, Thomas, meu marido acaba acreditando.
Mas, em determinados momentos, fica
difícil suportar isso. O que aconteceu me apavora, fazendo-me me sentir uma
maluca. Por isso, vou escrever sobre este estranho evento que aconteceu comigo quando
eu tinha 10 anos, para tentar entendê-lo, embora não tenha certeza se vou
conseguir.
Nessa época, eu era uma menina magra,
dentuça e, ainda por cima tinha as orelhas grandes. Por isso, rapidamente
“ganhei” na escola o “fofo” apelido de “ratinha”. “Lá vem a ratinha”- ouvia os
meninos dizendo enquanto eu andava pelos corredores da escola. Isso me deixava
muito magoada, porque eu queria que eles me vissem como uma menina e não daquele
jeito. Eu também queria mostrar a eles,
e, principalmente, para as outras meninas, que tinha peitos, e não o que
chamava de tábua de passar-roupa. Para piorar minha já humilhante situação, eu
não podia usar roupas parecidas como as das outras meninas e minha mãe insistia
que eu me vestisse como um menininho: cabelinho curto, camiseta e calças
cumpridas. Isto porque, sendo professora de antropologia, minha mãe acreditava
que as pessoas do sexo feminino somente poderiam manifestar a sua sexualidade
depois que menstruassem, e, isso infelizmente, naquela época estava longe de
acontecer. Quando falava da minha vontade em ser igual a outras meninas da
minha idade, meu pai que era técnico de informática em uma multinacional, ele
agia de modo parecido que minha mãe:
-Não sei por que você quer ser igual a
elas, que se comportam como se fossem mulheres adultas. Aproveite a infância,
ela passa rápido.
Naquela época, parecia que eu estava condenada
a passar a vida toda vestida de “Joãozinho” e ser chamada de “ratinha” pelos
meninos e meninas da escola.
Um dia, depois da aula, voltei para casa
de ônibus. Nesta ocasião, eu estava pensando
sobre qual seria a origem das mirabolantes histórias que costumava ler,
principalmente, a de Branca de Neve que, no original era muito diferente do
filme “fofo” da Disney. Quando, de repente, vi uma casa antiga que parecia ter
saído de um conto de Edgar Alan Poe. Parecia ser muito grande e ocupava toda a
esquina, muito diferente das outras casas daquela rua. Esta casa, para ser mais
exata, uma mansão, era toda construída de tijolos vermelhos, que brilhavam
quando a luz do sol se refletia neles e tinha um jardim na frente cheio de
mato, o que demonstrava que estava abandonada há muito tempo. Apesar de ser
bastante sinistro (e, hoje penso que talvez tenha sido isso), aquele lugar
imediatamente exerceu sobre mim um irresistível poder de atração a ponto de
fazer sinal para que o motorista parasse o ônibus na próxima esquina. Eu desci
e corri na direção da antiga fachada da casa. Logo, notei que o portão de ferro
corroído pela ferrugem era baixo e não tive muita dificuldade em pulá-lo.
Caminhei pelo jardim abandonado, que para mim parecia com uma pequena floresta.
Enquanto andava, pude sentir a grama arranhando minhas pernas. Apesar do medo
de ser mordida por algum tipo de bicho, ou inseto, eu continuei minha
exploração. É provável, que aquela sensação de delicioso perigo que eu
experimentava naquele momento, tenha sido herdada de minha mãe que, antes de se
casar tinha passado seis meses na África, convivendo com uma tribo de selvagens
que praticavam canibalismo.
Eu andei em direção à porta de entrada e
tentei abri-la. Como já deveria ter adivinhado tratava-se de uma tarefa
impossível, ainda mais devido a minha pouca força física. Fiquei meio
frustrada, mas não desisti. Resolvi caminhar em direção a parte de trás da
casa, na esperança de encontrar uma entrada. Lá, descobri o que parecia ser um
alçapão. Mas, meu entusiasmo durou pouco: vi que o alçapão estava trancado com
um grande cadeado. Olhei e constatei que as janelas ficavam a distância de
muitos metros de altura de onde eu estava. Era impossível escalar as paredes
que eram lisas e não tinham nenhum espaço onde eu pudesse me apoiar. Isso me
deixou chateada e, por ter entrando nenhuma forma de entrar na antiga mansão,
eu decidi voltar para casa. Estava andando no jardim, quando de repente senti o
chão desaparecer dos meus pés. Naquele momento, ouvi somente um barulho e na
sequencia, senti meu corpo despencar. Apesar da queda, percebi para meu alívio
que nenhum osso do meu corpo estava quebrado, embora sentisse uma forte dor em
um dos joelhos que tinha começado a sangrar. Olhei a minha volta e vi que
estava em lugar escuro, que era iluminado somente por uma fresta de luz que
entrava por um buraco. Também podia ouvir sons ameaçadores: eram chiados
seguidos pelos arranhões, ou passos rápidos na velha madeira do chão de
assoalho. Fiquei apavorada porque aquilo só podia significar uma coisa: ratos,
que pelo barulho que faziam, deviam ser bem grandes.
Eu ia me levantar e, apesar da dor que
sentia, tentar andar um pouco, quando ouvi o que parecia ser uma chave abrindo
uma porta. Assustada, resolvi ficar naquele lugar mesmo, porque lá me sentia
protegida pela escuridão. Então, a porta se abriu e uma pessoa curvada entrou
arrastando o que parecia ser um enorme saco plástico. No lugar onde eu estava
somente podia ver sua imagem “borrada”. Era uma mulher, alta e muito magra, que
estava vestida com uma capa preta e, enquanto arrastava o saco plástico gemia,
demonstrando que este deveria estar muito pesado.
-Não aguento mais fazer manutenção! Por
que eu não nasci homem! Mesmo com a idade, eles não sofrem tanto quanto nós! – Sou
obrigada a recorrer a isso quase o tempo todo para ficar jovem novamente. –
dizia ela enquanto arrastava o saco plástico. Na sequencia, ela foi até um
canto do porão e saiu de lá carregando objetos que imediatamente chamaram minha
atenção: pequenos potes de vidro contendo diferentes conteúdos coloridos,
alguns deles muito estranhos, uma gigantesca panela de barro e um punhal.
Então, ela pegou o punhal e abriu o saco
plástico. Meu Deus! Como posso descrever o que tinha ali! Apesar das sombras,
pude distinguir a fisionomia de um homem que me olhou com uma expressão de
horror. Ele estava morto. Naquele momento, tive vontade de gritar, por isso
tapei a boca com as mãos, sentindo meus dentes penetrarem fundo em seus dedos.
Então, a mulher começou a jogar o
conteúdo dos potes de vidro dentro da grande panela de barro. De onde estava,
pude perceber que eram coisas repulsivas, que me deram náuseas. Pareciam ser
cadáveres de bichos e, até mesmo pude distinguir o parecia ser o feto de um
bebê humano. Todas às vezes que alguma coisa era jogada no caldeirão de barro
surgia um brilho intenso, que me deixava completamente cega durante alguns
segundos.
Depois que todos os potes ficaram
vazios, ela pegou o punhal e enfiou-o na garganta do cadáver. Neste instante,
tive novamente vontade de gritar: parecia que estava dentro de um filme de
horror, com a diferença que neste caso, eu era protagonista e minha vida estava
em perigo. Mas, me controlei e o grito morreu na minha garganta.
Depois, ela pegou despejou o sangue no
caldeirão de barro e mexeu. Novamente, um brilho intenso surgiu do nada, desta
vez mais forte. Então, ouvi uma sinistra gargalha que ecoou por todo o sótão.
Fiquei apavorada e me encolhi na esperança de que pudesse ficar menor e passar
despercebida.
–Vou tirar isso, está me sufocando –
disse a mulher fazendo um gesto que eu não acreditei. Era como se ela
arrancasse o próprio rosto. Foi instante, que percebi que estava usando uma
máscara.
Quando vi o seu verdadeiro rosto, levei
um susto e, novamente tive vontade de gritar. Apesar de ter assistido a vários
filmes e ter lido muitas histórias, com todo o tipo de monstro, posso afirmar
que ela é a coisa mais pavorosa que já vi na vida. Não sei se posso descrever
com exatidão com era aquela criatura: seu nariz era proeminente e parecia o
focinho de um rato; suas orelhas e seus dentes salientes eram pontudos com os
de um morcego e seus olhos eram oblíquos e se assemelhavam ao das cobras que eu
costumava ver quando ia aos domingos com meu pai no jardim zoológico. Mais o
pior de tudo é que ela era careca e sua cabeça tinha a forma de gigantesco e
deformado ovo.
Vendo aquela aberração, além do pavor, constatei
algo que me deu uma estranha sensação de felicidade: diante da sua feiúra, eu
percebi que era bonita. Logo depois, a criatura mergulhou o cálice dentro
caldeirão enchendo-o com um líquido viscoso. Em só gole, ela bebeu todo o seu
conteúdo. Então, aconteceu uma coisa que eu também não vou me esquecer jamais:
seu rosto começou a se contorcer com se fosse puxado por uma força invisível.
Deveria doer muito.
Fiquei espantada quando vi que seu nariz
e suas orelhas começaram a diminuir de tamanho, seus olhos aos poucos adquirem
uma aparência humana e, acima de tudo sua cabeça começou a ficar menor e, por
cima dela apareceu uma imensidão de fios de cabelos que a cobriu inteira em
segundos!
Quando olhei com mais atenção não
consegui esconder a surpresa e soltei um: Nossa! bem baixinho. A poucos metros
de onde estava havia uma mulher que chamava atenção por sua aparência, daquele
tipo que a gente costuma ver estampando capas de revista ou, em filmes sucessos
de bilheteria.
Na sequencia, ela arrancou a capa de couro e
jogou de lado, revelando que usava um vestido apertado que realçava suas curvas,
principalmente, os seios que balançavam dentro de seu decote fundo. Logo
depois, ela pegou uma bolsa que estava jogada em canto e de dentro dela tirou
um espelho:
-Espelho, espelho meu. Existe alguém
mais linda do que eu? – perguntou a mulher falando aquela frase clichê que
sabia de cor e que por brincadeira repetia algumas vezes no banheiro.
-Você sabe que existe, Selena. Charlize
Theron, Angelina Jolie, Jennifer Laurence, Scarlet Johanson são muito mais bonitas.
Mas, devo dizer que você se encaixa dentro dos padrões de beleza e, por isso, é
muito atraente para os homens. Mas, com certeza esta sua aparência não vai
durar muito tempo e aí você vai ter que recorrer à manutenção de novo. –
respondeu o espelho mágico, sem esconder o sarcasmo.
Diante deste comentário, Selena – era
este o nome dela, ficou muito irritada. Por um momento, eu achei que ela pegar
o espelho e reduzi-lo em cacos de vidro. Mas, para minha surpresa, ela o
acariciou como se fosse uma criança, beijo-o e respondeu:
-Apesar da forma como me trata, eu não
consigo viver sem você, amorzinho.
Então, de repente, das sombras um rato
apareceu e veio na minha direção. Não satisfeito com isso, ele subiu na minha
perna, o que fez com que soltasse um grito.
Selena ficou furiosa. Ela avançou no
sótão gritando:
-Quem está aí! Apareça, senão vai virar
fumaça!
Quando
ouvi sua ameaça, me levantei e tentei correr. Mas, ela foi mais rápida e me
agarrou pelos cabelos.
-Ora o que temos aqui: uma garotinha.
Que beleza! Faz tempo que não tenho o prazer de degustar uma criança. Mas, que
pena... você é tão magrinha, só tem ossos. Não importa. Sua carne misturada com
legumes vai dar um bom guisado. Humm... que delícia, já estou com água na boca!
-Me solta, sua bruxa! – gritei com toda
a força dos meus pulmões.
- Vejo que você é esperta. Acertou em
cheio querida: eu sou uma bruxa. E como você pode ver eu existo de verdade. Não sou uma fantasia de contos de fadas. E
também já deve saber que meu nome é Selena. Agora chega! Vou dar um jeito em você
agora, querida. – disse ela me segurando com tanta força que eu senti que a
qualquer momento ela ia esmagar meu braço.
Neste instante, eu reuni as poucas
forças que tinha e pisei no pé dela. Isso fez com que ela perdesse o equilíbrio
e caísse como uma fruta podre no chão. Aproveitei a situação e corri, sem saber
ao certo para onde ir. Vi a porta da frente aberta e fui à direção ao jardim.
Selena correu atrás de mim, com impressionante velocidade. Em um gesto rápido,
ela agarrou novamente meu braço e começou a me puxar de volta. Eu tentei
escapar, mas seus dedos se prenderam em mim como tenazes.
-Se prepare minha querida para virar
jantar de bruxa. – gargalhou ela.
Então, de repente, começou a chover
muito forte. Neste instante, olhei para Selena. A pele molhada de seu rosto
começou a se desfazer como se fosse feita de papel, revelando sua verdadeira e
horrenda aparência. Desesperada, ela gritou, largando meu braço:
-Olha só que você fez sua pestinha!
Estragou a minha manutenção!
Na
sequencia, ela entrou na casa e bateu violentamente a porta. Eu aproveitei e
corri na direção da rua. Eu continuei correndo até chegar em casa. Quando
cheguei percebi que estava ensopada. Naquela noite, tive uma febre alta muito e
toda às vezes que fechava os olhos me via à mente a horrenda imagem da bruxa.
Fiquei doente durante dias e, minha mãe foi obrigada a pedir uma licença da
faculdade, onde dava aulas. Depois daquele dia, nunca mais consegui ler uma
história dos irmãos Grimm ou, assistir filmes de horror. Eu tentei algumas
vezes contar o que aconteceu aos meus pais, mas sabia que eles não iriam
acreditar e, com certeza achariam que tudo tinha sido um delírio provocado pela
minha fértil imaginação infantil. No entanto, eu sabia que estava certa. A
prova de que tudo tinha sido real, logo apareceu: uma notícia divulgada por
jornais e revistas que comentava sobre o misterioso desaparecimento de um
excêntrico milionário dono de fábrica de linguiça. Quando vi sua imagem
imediatamente eu o reconheci: era o homem morto que estava dentro do saco
plástico no sótão da casa abandonada.
Passado algum tempo, meu pai recebeu uma
proposta para trabalhar em outro país, por isso nos mudamos, da fria Londres,
capital da Inglaterra, para a ensolarada Califórnia nos Estados Unidos, onde
conheci meu futuro marido. Mas mesmo assim, depois de tantos anos, ainda tenho
receio que Selena queria se vingar de mim, ou pior vingar-se nos meus filhos. É
por isso que ás vezes, sempre depois da meia noite, de forma que eu não consigo
explicar, vejo seu horrendo rosto me observando nas sombras. Também fico atenta
quando passo perto de uma banca de jornal ou, vejo um anúncio de televisão para
ver se consigo reconhecê-la em uma alguma atriz famosa. Mas, acima de tudo, eu
não deixo meus filhos andarem sozinhos de ônibus, nem mesmo para ir à escola.
Eu sempre estou com uma desculpa na ponta da língua: bullyng, gripe, outro tipo
de vírus infeccioso, um pedófilo que tinha sido visto dirigindo uma vã preta a
alguns metros na vizinhança. Eu fazia
uso de um repertório variado de desculpas para leva-los e busca-los de carro, visando
ter controle pleno sobre eles o tempo todo. O problema é que Melissa está agora
com dez anos e, assim como eu e minha mãe já demonstrou que gosta de sentir o
que chamei de deliciosa sensação de perigo.
Outro dia, quando fui entrei em seu
quarto, descobri antigos filmes de horror, todos eles ambientados em castelos e
casas mal assombradas. Além disso, ela gosta dos contos dos irmãos Grimm, sob a
alegação de que eles não são tão “água com açúcar” como os outros. Eu logo
descobri que o conto de Branca de Neve é seu preferido, mas ao contrário do
imaginava, Melissa acha a rainha mais interessante do que a protagonista, que
para ela é somente uma garotinha boba, medrosa e chorona. Tão interessante, que
aguçou o interesse de minha filha por adquirir certos tipos de conhecimento.
Hoje descobri que Melissa estava fazendo uma pesquisa na internet sobre
práticas de bruxaria e aparições de bruxas em vários locais do mundo. E isso me
deixou muito preocupada.