domingo, 6 de outubro de 2013

O imortal continente de Érico Veríssimo

Infelizmente, os chamados clássicos da literatura brasileira são tratados, ou melhor, "mau tratados" na sala de aula. Isso acontece, não somente no ensino médio, mas também atinge as universidades, onde no curso de Letras, os alunos são obrigados a ler os chamados "grande autores autores", tais como Machado de Assis, Guimarães Rosa José de Alencar e, às vezes até mesmo a encarar "A escrava Isaura", romance sofrível, mas que é considerado ainda hoje (sabe-se lá por que) um dos expoentes do movimento romântico no Brasil. O resultado dessa imposição, é que em grande parte do tempo não temos prazer em ler os chamados romances considerados clássicos de nossa literatura. Pior; temos a tendência em achá-los difíceis, cansativos e, até mesmo herméticos. 
Essa impressão negativa, com relação a certas obras, se dissipa quando podemos ler os clássicos de nossa literatura, motivados pelo simples prazer e não por obrigação. Dessa forma, descobrimos o humor irônico, quase à beira do deboche, além de uma boa dose de crítica social aos costumes burgueses, em algumas situações descritas por Machado de Assis em Dom Casmurro e Memórias Póstumas de Brás Cubas, seus principais romances; os toques de realismo mágico de Rosa, que sua principal obra, Grande Sertão Veredas, propõe uma combinação do fantástico das novela de cavalaria com o modo de vida selvagem e, até mesmo bestial do povo sertanejo. 
Mas, apesar de Rosa e, principalmente, Machado serem considerados os "grandes pilares da literatura brasileira", foi Érico Veríssimo que consegue criar um mundo mítico e imortal, por meio do romance histórico brasileiro definitivo: O Tempo e Vento. Essa obra vasta, complexa, composta por três partes (O Continente, O Retrato e O Arquipélago) é equivalente ao Guerra e Paz, de Leon Tostoy é na literatura russa. Em seu enredo narrativo é traçado um vasto painel histórico que abrange não somente sobre às origens do Rio Grande do Sul, mas também procura explicar o surgimento de nosso país, por meio das transformações históricas e sociais que atingem seu principal núcleo, a família Terra-Cambará ao longo de duzentos anos. Dentro de O Tempo e o Vento, está inserido O Continente, narrativa que pode ser lida como uma "obra fechada".
Este "Continente" idealizado pelo escrito gaúcho é em si um mundo, com contornos míticos, que remete a tradição oral de mitos e lendas do Rio Grande, constituído por uma galeria de personagens inesquecíveis: Ana Terra, a sertaneja paulista, que dá origem a tradição guerreira da família Terra, descrita como uma força da natureza indestrutível; um certo capitão Rodrigo Cambará, o típico herói gaúcho, canalha e carismático ao mesmo tempo, que prefere morrer na guerra do definhando na cama; Bibiana, sua esposa que, apesar de fazer o papel de esposa resignada, que aceita as traições do marido, aos poucos revela ter uma personalidade forte e dominadora; Bolívar, o filho de Rodrigo e Bibiana que também tem espírito guerreiro, que o impulsiona para a auto-destruição, a misteriosa Luzia, a "teniaguá", mulher-demônio, capaz de causar repulsa e fascínio ao mesmo tempo, e que tem sobre si uma aura trágica de mistério e até mesmo terror e, por fim, para ficar entre os mais conhecidos, o Dr. Carl Winter, médico alemão que observa os habitantes de Santa Fé com uma visão científica, mas que aos poucos vai perdendo a identidade cultural européia e vai aderindo aos costumes e hábitos tipicamente gaúchos.
Dessa forma, por meio de personagens que fogem ao maniqueísmo, e nos conquistam mais por seus defeitos do que por qualidades, Veríssimo cria uma narrativa épica, onde se destaca o tema do herói, que obra tem sua representação máxima na figura do capitão Rodrigo Cambará. No entanto, o autor trata esse tema forma dúbia: embora, esse personagem seja descrito como um ser mítico, principalmente, no que se refere a sua coragem e quase imortalidade, de modo a torná-lo semelhante aos grandes heróis das epopeias gregas, tais como A Odisseia, também tem traços bastantes negativos, principalmente, o comportamento belicoso, que o conduz a um destino trágico. Também associadas a esse questionável heroísmo, se destacam as guerras, sejam elas de diferentes naturezas, que estão presentes em toda obra. Assim, Veríssimo de modo surpreendente, investe em um aspecto irônico: apesar da guerra estar arraigada na cultura gaúcha, ela é vista como um evento trágico, que somente traz sofrimento e angústia. Na perspectiva do autor, a guerra somente favorece os mais poderosos -o governo e os estanceiros, enquanto os mais pobres são apenas "instrumentos" usados e descartados. Dentro ainda desse tema, o que interessa para Veríssimo é mapear não a guerra como um acontecimento isolado - no romance não uma única descrição de uma sequencia de batalha, mas suas devastadoras consequencias que deixa marcas irreparáveis em alguns personagem e, até mesmo motivam suas mortes,  tornando O Tempo e o Vento um tipo de manifesto anti-bélico.
Também chama a atenção  que apesar de ser um romance histórico, que menciona pessoas reais, tais como D. Pedro II, Duque de Caxias, nessa obra o autor cria o que pode ser definida como uma atmosfera gótica, que se concretiza seu principal cenário, o sobrado, que representa a presença do passado em um tempo presente. É no sobrado que, desde suas misteriosas origens se configura como um ambiente sinistro, que o autor promove o que pode ser definido como "sobrenaturalização" do real, por meio dos fantasmas vistos ou imaginados por Bibiana, pela presença e ação da morte, que ameaça se espalhar entre seus habitantes - em uma cena de horror que se passa no no sobrado ocorre um visível diálogo com o universo mórbido de Alan Poe, através da recriação de um momento de A queda da casa de Usher, seu conto mais conhecido e, principalmente, por seu vínculo com Luzia, a misteriosa "teniágua"- mulher demônio, que remete a um mito gaúcho e também possui características que evocam as sedutoras criaturas infernais que remontam à tradição gótico-literária das narrativas de Mathew Lewis, Hoffman, e demais autores.
Assim, é partir da combinação de variados estilos de narração e de gêneros literários, que Veríssimo , que possibilita várias leituras. É lamentável apesar de sua reconhecida importância dentro da literatura brasileira, O Continente, assim como os outros livros que compõem O Tempo e o Vento, ainda sejam  vistos como "obras regionalistas", ou pior "gaúchas", porque reproduz aspectos da cultura do Rio Grande do Sul. No entanto, quem se desfizer desse preconceito bobo e que nada acrescenta para seu entendimento mais amplo, vai poder constatar que, do mesmo modo que sua protagonista, Bibiana, estamos diante de um livro capaz de desafiar as barrerias do tempo, tempo esse que é descrito por Veríssimo de forma marcante, de modo a torná-lo imortal entre outras obras-primas não somente da literatura nacional, mas da literatura em geral, devido ao seu poder de nos convencer da existência de uma realidade, às vezes trágicas, mas de uma beleza incontestável, arrebatadora e eterna.

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