sábado, 13 de setembro de 2014

Conto: A Bruxa


Meu nome é Elizabeth Morrey e tenho vinte sete anos. Posso dizer que sou uma pessoa considerada normal. Sou casada com um advogado e tenho dois filhos saudáveis e bonitos: Melissa e Jack. Também posso dizer que me considero uma pessoa feliz: tenho uma boa casa, e, apesar de não exercer a profissão que escolhi – ser professora, estou satisfeita em ser dona-de-casa, embora não seja do tipo convencional. Somente fico coordenando o que a empregada faz, vigiando-a de perto, sem que ela perceba. Contudo, às vezes, geralmente, depois da meia-noite, uma lembrança do passado me tira o sono. Eu faço de tudo para esconder o efeito terrível que ela provoca em mim, mas meu marido quando me vê com olheiras no dia seguinte, me pergunta por que eu não consegui dormir. Nestes momentos, eu sempre dou uma desculpa e, por mais “esfarrapada” que ela seja, Thomas, meu marido acaba acreditando.
Mas, em determinados momentos, fica difícil suportar isso. O que aconteceu me apavora, fazendo-me me sentir uma maluca. Por isso, vou escrever sobre este estranho evento que aconteceu comigo quando eu tinha 10 anos, para tentar entendê-lo, embora não tenha certeza se vou conseguir. 
Nessa época, eu era uma menina magra, dentuça e, ainda por cima tinha as orelhas grandes. Por isso, rapidamente “ganhei” na escola o “fofo” apelido de “ratinha”. “Lá vem a ratinha”- ouvia os meninos dizendo enquanto eu andava pelos corredores da escola. Isso me deixava muito magoada, porque eu queria que eles me vissem como uma menina e não daquele jeito.  Eu também queria mostrar a eles, e, principalmente, para as outras meninas, que tinha peitos, e não o que chamava de tábua de passar-roupa. Para piorar minha já humilhante situação, eu não podia usar roupas parecidas como as das outras meninas e minha mãe insistia que eu me vestisse como um menininho: cabelinho curto, camiseta e calças cumpridas. Isto porque, sendo professora de antropologia, minha mãe acreditava que as pessoas do sexo feminino somente poderiam manifestar a sua sexualidade depois que menstruassem, e, isso infelizmente, naquela época estava longe de acontecer. Quando falava da minha vontade em ser igual a outras meninas da minha idade, meu pai que era técnico de informática em uma multinacional, ele agia de modo parecido que minha mãe:
-Não sei por que você quer ser igual a elas, que se comportam como se fossem mulheres adultas. Aproveite a infância, ela passa rápido.
Naquela época, parecia que eu estava condenada a passar a vida toda vestida de “Joãozinho” e ser chamada de “ratinha” pelos meninos e meninas da escola.
Um dia, depois da aula, voltei para casa de ônibus.  Nesta ocasião, eu estava pensando sobre qual seria a origem das mirabolantes histórias que costumava ler, principalmente, a de Branca de Neve que, no original era muito diferente do filme “fofo” da Disney. Quando, de repente, vi uma casa antiga que parecia ter saído de um conto de Edgar Alan Poe. Parecia ser muito grande e ocupava toda a esquina, muito diferente das outras casas daquela rua. Esta casa, para ser mais exata, uma mansão, era toda construída de tijolos vermelhos, que brilhavam quando a luz do sol se refletia neles e tinha um jardim na frente cheio de mato, o que demonstrava que estava abandonada há muito tempo. Apesar de ser bastante sinistro (e, hoje penso que talvez tenha sido isso), aquele lugar imediatamente exerceu sobre mim um irresistível poder de atração a ponto de fazer sinal para que o motorista parasse o ônibus na próxima esquina. Eu desci e corri na direção da antiga fachada da casa. Logo, notei que o portão de ferro corroído pela ferrugem era baixo e não tive muita dificuldade em pulá-lo. Caminhei pelo jardim abandonado, que para mim parecia com uma pequena floresta. Enquanto andava, pude sentir a grama arranhando minhas pernas. Apesar do medo de ser mordida por algum tipo de bicho, ou inseto, eu continuei minha exploração. É provável, que aquela sensação de delicioso perigo que eu experimentava naquele momento, tenha sido herdada de minha mãe que, antes de se casar tinha passado seis meses na África, convivendo com uma tribo de selvagens que praticavam canibalismo. 
Eu andei em direção à porta de entrada e tentei abri-la. Como já deveria ter adivinhado tratava-se de uma tarefa impossível, ainda mais devido a minha pouca força física. Fiquei meio frustrada, mas não desisti. Resolvi caminhar em direção a parte de trás da casa, na esperança de encontrar uma entrada. Lá, descobri o que parecia ser um alçapão. Mas, meu entusiasmo durou pouco: vi que o alçapão estava trancado com um grande cadeado. Olhei e constatei que as janelas ficavam a distância de muitos metros de altura de onde eu estava. Era impossível escalar as paredes que eram lisas e não tinham nenhum espaço onde eu pudesse me apoiar. Isso me deixou chateada e, por ter entrando nenhuma forma de entrar na antiga mansão, eu decidi voltar para casa. Estava andando no jardim, quando de repente senti o chão desaparecer dos meus pés. Naquele momento, ouvi somente um barulho e na sequencia, senti meu corpo despencar. Apesar da queda, percebi para meu alívio que nenhum osso do meu corpo estava quebrado, embora sentisse uma forte dor em um dos joelhos que tinha começado a sangrar. Olhei a minha volta e vi que estava em lugar escuro, que era iluminado somente por uma fresta de luz que entrava por um buraco. Também podia ouvir sons ameaçadores: eram chiados seguidos pelos arranhões, ou passos rápidos na velha madeira do chão de assoalho. Fiquei apavorada porque aquilo só podia significar uma coisa: ratos, que pelo barulho que faziam, deviam ser bem grandes.
Eu ia me levantar e, apesar da dor que sentia, tentar andar um pouco, quando ouvi o que parecia ser uma chave abrindo uma porta. Assustada, resolvi ficar naquele lugar mesmo, porque lá me sentia protegida pela escuridão. Então, a porta se abriu e uma pessoa curvada entrou arrastando o que parecia ser um enorme saco plástico. No lugar onde eu estava somente podia ver sua imagem “borrada”. Era uma mulher, alta e muito magra, que estava vestida com uma capa preta e, enquanto arrastava o saco plástico gemia, demonstrando que este deveria estar muito pesado.
-Não aguento mais fazer manutenção! Por que eu não nasci homem! Mesmo com a idade, eles não sofrem tanto quanto nós! – Sou obrigada a recorrer a isso quase o tempo todo para ficar jovem novamente. – dizia ela enquanto arrastava o saco plástico. Na sequencia, ela foi até um canto do porão e saiu de lá carregando objetos que imediatamente chamaram minha atenção: pequenos potes de vidro contendo diferentes conteúdos coloridos, alguns deles muito estranhos, uma gigantesca panela de barro e um punhal.
Então, ela pegou o punhal e abriu o saco plástico. Meu Deus! Como posso descrever o que tinha ali! Apesar das sombras, pude distinguir a fisionomia de um homem que me olhou com uma expressão de horror. Ele estava morto. Naquele momento, tive vontade de gritar, por isso tapei a boca com as mãos, sentindo meus dentes penetrarem fundo em seus dedos.
Então, a mulher começou a jogar o conteúdo dos potes de vidro dentro da grande panela de barro. De onde estava, pude perceber que eram coisas repulsivas, que me deram náuseas. Pareciam ser cadáveres de bichos e, até mesmo pude distinguir o parecia ser o feto de um bebê humano. Todas às vezes que alguma coisa era jogada no caldeirão de barro surgia um brilho intenso, que me deixava completamente cega durante alguns segundos.
Depois que todos os potes ficaram vazios, ela pegou o punhal e enfiou-o na garganta do cadáver. Neste instante, tive novamente vontade de gritar: parecia que estava dentro de um filme de horror, com a diferença que neste caso, eu era protagonista e minha vida estava em perigo. Mas, me controlei e o grito morreu na minha garganta.
Depois, ela pegou despejou o sangue no caldeirão de barro e mexeu. Novamente, um brilho intenso surgiu do nada, desta vez mais forte. Então, ouvi uma sinistra gargalha que ecoou por todo o sótão. Fiquei apavorada e me encolhi na esperança de que pudesse ficar menor e passar despercebida.
–Vou tirar isso, está me sufocando – disse a mulher fazendo um gesto que eu não acreditei. Era como se ela arrancasse o próprio rosto. Foi instante, que percebi que estava usando uma máscara.
Quando vi o seu verdadeiro rosto, levei um susto e, novamente tive vontade de gritar. Apesar de ter assistido a vários filmes e ter lido muitas histórias, com todo o tipo de monstro, posso afirmar que ela é a coisa mais pavorosa que já vi na vida. Não sei se posso descrever com exatidão com era aquela criatura: seu nariz era proeminente e parecia o focinho de um rato; suas orelhas e seus dentes salientes eram pontudos com os de um morcego e seus olhos eram oblíquos e se assemelhavam ao das cobras que eu costumava ver quando ia aos domingos com meu pai no jardim zoológico. Mais o pior de tudo é que ela era careca e sua cabeça tinha a forma de gigantesco e deformado ovo.
Vendo aquela aberração, além do pavor, constatei algo que me deu uma estranha sensação de felicidade: diante da sua feiúra, eu percebi que era bonita. Logo depois, a criatura mergulhou o cálice dentro caldeirão enchendo-o com um líquido viscoso. Em só gole, ela bebeu todo o seu conteúdo. Então, aconteceu uma coisa que eu também não vou me esquecer jamais: seu rosto começou a se contorcer com se fosse puxado por uma força invisível. Deveria doer muito.
Fiquei espantada quando vi que seu nariz e suas orelhas começaram a diminuir de tamanho, seus olhos aos poucos adquirem uma aparência humana e, acima de tudo sua cabeça começou a ficar menor e, por cima dela apareceu uma imensidão de fios de cabelos que a cobriu inteira em segundos!
Quando olhei com mais atenção não consegui esconder a surpresa e soltei um: Nossa! bem baixinho. A poucos metros de onde estava havia uma mulher que chamava atenção por sua aparência, daquele tipo que a gente costuma ver estampando capas de revista ou, em filmes sucessos de bilheteria.
 Na sequencia, ela arrancou a capa de couro e jogou de lado, revelando que usava um vestido apertado que realçava suas curvas, principalmente, os seios que balançavam dentro de seu decote fundo. Logo depois, ela pegou uma bolsa que estava jogada em canto e de dentro dela tirou um espelho:
-Espelho, espelho meu. Existe alguém mais linda do que eu? – perguntou a mulher falando aquela frase clichê que sabia de cor e que por brincadeira repetia algumas vezes no banheiro.
 -Você sabe que existe, Selena. Charlize Theron, Angelina Jolie, Jennifer Laurence, Scarlet Johanson são muito mais bonitas. Mas, devo dizer que você se encaixa dentro dos padrões de beleza e, por isso, é muito atraente para os homens. Mas, com certeza esta sua aparência não vai durar muito tempo e aí você vai ter que recorrer à manutenção de novo. – respondeu o espelho mágico, sem esconder o sarcasmo.
Diante deste comentário, Selena – era este o nome dela, ficou muito irritada. Por um momento, eu achei que ela pegar o espelho e reduzi-lo em cacos de vidro. Mas, para minha surpresa, ela o acariciou como se fosse uma criança, beijo-o e respondeu:
-Apesar da forma como me trata, eu não consigo viver sem você, amorzinho. 
Então, de repente, das sombras um rato apareceu e veio na minha direção. Não satisfeito com isso, ele subiu na minha perna, o que fez com que soltasse um grito.
Selena ficou furiosa. Ela avançou no sótão gritando:
-Quem está aí! Apareça, senão vai virar fumaça!
 Quando ouvi sua ameaça, me levantei e tentei correr. Mas, ela foi mais rápida e me agarrou pelos cabelos.
-Ora o que temos aqui: uma garotinha. Que beleza! Faz tempo que não tenho o prazer de degustar uma criança. Mas, que pena... você é tão magrinha, só tem ossos. Não importa. Sua carne misturada com legumes vai dar um bom guisado. Humm... que delícia, já estou com água na boca!
-Me solta, sua bruxa! – gritei com toda a força dos meus pulmões.
- Vejo que você é esperta. Acertou em cheio querida: eu sou uma bruxa. E como você pode ver eu existo de verdade.  Não sou uma fantasia de contos de fadas. E também já deve saber que meu nome é Selena. Agora chega! Vou dar um jeito em você agora, querida. – disse ela me segurando com tanta força que eu senti que a qualquer momento ela ia esmagar meu braço.
Neste instante, eu reuni as poucas forças que tinha e pisei no pé dela. Isso fez com que ela perdesse o equilíbrio e caísse como uma fruta podre no chão. Aproveitei a situação e corri, sem saber ao certo para onde ir. Vi a porta da frente aberta e fui à direção ao jardim. Selena correu atrás de mim, com impressionante velocidade. Em um gesto rápido, ela agarrou novamente meu braço e começou a me puxar de volta. Eu tentei escapar, mas seus dedos se prenderam em mim como tenazes.
-Se prepare minha querida para virar jantar de bruxa. – gargalhou ela.
Então, de repente, começou a chover muito forte. Neste instante, olhei para Selena. A pele molhada de seu rosto começou a se desfazer como se fosse feita de papel, revelando sua verdadeira e horrenda aparência. Desesperada, ela gritou, largando meu braço:
-Olha só que você fez sua pestinha! Estragou a minha manutenção!
 Na sequencia, ela entrou na casa e bateu violentamente a porta. Eu aproveitei e corri na direção da rua. Eu continuei correndo até chegar em casa. Quando cheguei percebi que estava ensopada. Naquela noite, tive uma febre alta muito e toda às vezes que fechava os olhos me via à mente a horrenda imagem da bruxa. Fiquei doente durante dias e, minha mãe foi obrigada a pedir uma licença da faculdade, onde dava aulas. Depois daquele dia, nunca mais consegui ler uma história dos irmãos Grimm ou, assistir filmes de horror. Eu tentei algumas vezes contar o que aconteceu aos meus pais, mas sabia que eles não iriam acreditar e, com certeza achariam que tudo tinha sido um delírio provocado pela minha fértil imaginação infantil. No entanto, eu sabia que estava certa. A prova de que tudo tinha sido real, logo apareceu: uma notícia divulgada por jornais e revistas que comentava sobre o misterioso desaparecimento de um excêntrico milionário dono de fábrica de linguiça. Quando vi sua imagem imediatamente eu o reconheci: era o homem morto que estava dentro do saco plástico no sótão da casa abandonada.
Passado algum tempo, meu pai recebeu uma proposta para trabalhar em outro país, por isso nos mudamos, da fria Londres, capital da Inglaterra, para a ensolarada Califórnia nos Estados Unidos, onde conheci meu futuro marido. Mas mesmo assim, depois de tantos anos, ainda tenho receio que Selena queria se vingar de mim, ou pior vingar-se nos meus filhos. É por isso que ás vezes, sempre depois da meia noite, de forma que eu não consigo explicar, vejo seu horrendo rosto me observando nas sombras. Também fico atenta quando passo perto de uma banca de jornal ou, vejo um anúncio de televisão para ver se consigo reconhecê-la em uma alguma atriz famosa. Mas, acima de tudo, eu não deixo meus filhos andarem sozinhos de ônibus, nem mesmo para ir à escola. Eu sempre estou com uma desculpa na ponta da língua: bullyng, gripe,  outro tipo de vírus infeccioso, um pedófilo que tinha sido visto dirigindo uma vã preta a alguns metros na vizinhança.  Eu fazia uso de um repertório variado de desculpas para leva-los e busca-los de carro, visando ter controle pleno sobre eles o tempo todo. O problema é que Melissa está agora com dez anos e, assim como eu e minha mãe já demonstrou que gosta de sentir o que chamei de deliciosa sensação de perigo.

Outro dia, quando fui entrei em seu quarto, descobri antigos filmes de horror, todos eles ambientados em castelos e casas mal assombradas. Além disso, ela gosta dos contos dos irmãos Grimm, sob a alegação de que eles não são tão “água com açúcar” como os outros. Eu logo descobri que o conto de Branca de Neve é seu preferido, mas ao contrário do imaginava, Melissa acha a rainha mais interessante do que a protagonista, que para ela é somente uma garotinha boba, medrosa e chorona. Tão interessante, que aguçou o interesse de minha filha por adquirir certos tipos de conhecimento. Hoje descobri que Melissa estava fazendo uma pesquisa na internet sobre práticas de bruxaria e aparições de bruxas em vários locais do mundo. E isso me deixou muito preocupada. 

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