segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Resenha: Carrie, a estranha (livro)


Este é o primeiro romance publicado de Stephen King e a história que explica seu surgimento é tão interessante que vale a pena ser conhecida. Ela é contada pelo autor em On Writing, - que também será comentado neste blog, delicioso livro, que mistura relato autobiográfico e manual, com dicas uteis para quem quer se tornar escritor. Sobre Carrie, a estranha, o autor relata que após ter escrito cerca de noventa páginas de seu manuscrito sofreu um bloqueio criativo e ficou empacado, sem saber como dar continuidade a historia que criou. King salienta que ficou tão irritado que jogou o texto datilografado de Carrie na lixeira. Felizmente, este foi resgatado a tempo por Tabitha, sua esposa e anjo da guarda – desconfio que ela é co-autora de muitos romances de King, principalmente, quando  ele estava enfrentando um período difícil quando estava viciado em álcool e drogas. Após ler o manuscrito, Tabitha achou que ele tinha potencial para se tornar um romance e sugeriu ao marido que fizesse alterações nele e também contribuiu com informações relacionadas à intimidade das mulheres – assunto que  King tinha muito pouco conhecimento. Posteriormente, Stephen King concluiu Carrie e enviou seu manuscrito com as alterações proposta por sua esposa para várias editoras. O resto é história - conforme dizem os americanos. Quando foi publicado em 1974, o livro de forma imediata se tornou um best-seller e, posteriormente, foi adaptado para o cinema.     
Devido ao filme dirigido por Brian De Palma ser tão bom  a ponto de ser considerado uma obra-prima do gênero do horror pela crítica especializada se torna difícil avaliar o livro de King. Ambos são muito parecidos no que se refere a trama: ela é praticamente a mesma e somente foram feitos alguns cortes e pequenas mudanças. O livro é centrado em uma adolescente tímida chamada Carrie White que é alvo constante de bullying na escola. As garotas de sua turma a hostilizam a tratam como se ela fosse uma aberração da natureza e isso piora quando a garota sofre sua primeira menstruação no vestiário feminino. Sem saber o motivo de seu sangramento (ela está menstruada pela primeira vez), Carrie acha que vai morrer enquanto suas colegas aproveitam sua reação desesperada para humilhá-la. Nesta passagem, King capricha na crueldade e coloca uma expressão vulgar na boca das garotas: “arrolha Carrie”, enquanto elas bombardeiam a menina com tampões e absorventes.


Carrie se assusta com o sangramento

Além de ser “saco de pancada” na escola, Carrie também come “o pão que o diabo amassou” com a mãe, Margareth White, outra criação notável de King, capaz de provocar genuínos arrepios de medo a cada aparição. Fazendo lembrar uma bruxa de contos de fadas, ela oscila entre a loucura e o sadismo, na maneira como trata sua própria filha, tornando Carrie uma pessoa solitária e infeliz. 


                         Margareth White a afetuosa mãe de Carrie

Vale ressaltar que Margareth é praticante de uma doutrina religiosa deturpada, na qual se destaca a figura de um deus vingativo e que não conhece o perdão. Os trechos mais assustadores do livro são aqueles que focam a relação problemática da garota com a mãe fanática religiosa e também aqueles que descrevem a sinistra decoração da casa em que habitam. King consegue criar um cenário apavorante e, até mesmo “gótico” em certa medida, no qual manifestações associadas ao sagrado – estátuas e pinturas religiosas são vistas pela perspectiva de Carrie (e do leitor) como repugnantes, capazes de despertar sensações de terror, o que constitui um traço de originalidade dentro da literatura de horror.

                            O "aconchegante" quartinho de Carrie

Também chama a atenção a marcante passagem do baile de formatura - Carrie é uma variação macabra de Cinderela!, em que a garota após passar por tantas humilhações e ser constantemente oprimida pela mãe, literalmente explode e demonstra sua revolta, por meio da manifestação de uma habilidade sobrenatural. Sobre ela não vou entrar em detalhes, uma vez que neste momento a narrativa atinge seu clímax, chocante e de grande impacto, mesmo na época atual. Basta dizer que o autor neste trecho de Carrie faz com que o real é “sobrenaturalizado”, por meio de uma assustadora e abrupta mudança na personagem, que também constitui uma inovação na exploração dos efeitos de horror.
Contudo, nem sempre King acerta na forma de narração do romance. Este é constituído por trechos de um livro que propõe uma explicação científica para a estranha natureza da protagonista, na qual também não entrarei em detalhes. Além de não me convencer, esta não acrescenta nada para o desenvolvimento da trama; pior “quebra” seu ritmo e antecipam situações que deveriam ser esclarecidas mais adiante. Também não foi uma boa ideia ter inserido trechos de outro livro, em que os estranhos eventos envolvendo Carrie são contados por Sue Snell, que soam artificiais e não acrescentam nada novo a história.
Embora estes trechos atrapalhem – talvez, este tenha sido um artifício empregado pelo autor  para tornar o livro maior e, assim ser mais facilmente publicado, eles não o prejudicam e este se mantém bastante assustador e, até mesmo inovador na maneira como o autor desenvolve sua narrativa a partir reprodução verossímil do ambiente do High School, no qual predominam o preconceito e a intolerância entre os adolescentes – dois elementos  que unidos dão origem a uma combinação bombástica no romance de King.
Apesar de estar inserido no gênero do horror, Carrie é um retrato cruel do que ocorre com aqueles que são rotulados como loosers (perdedores) nos Estados Unidos e a revolta da personagem central e seus efeitos devastadores antecipam o comportamento desajustado e auto-destrutivo dos jovens da cidade de Columbine, que resultou em banho de sangue.
Em seu aspecto metafórico, Carrie pode ser compreendido como uma metáfora sobre os devastadores efeitos provocados pelo bullying. No livro de King, as contínuas agressões sofridas pela protagonista, uma frágil adolescente geram sua terrível vingança contra tudo e contra todos. Nenhum autor conseguiu descrever tão bem o sofrimento e a dor experimentados durante o período da adolescência como Stephen King, - que também foi quando adolescente também foi excluído e marginalizado. Assim, a força de Carrie, a estranha está na maneira como sintetiza uma triste realidade em uma história triste e apavorante. Sem dúvida, é um clássico da literatura de horror e um livro que vale a pena ser lido mesmo para aqueles que assistiram ao filme de Brian de Palma, outro clássico no gênero.

(livro) : **** (muito bom)
(filme): ***** (excelente)


Diferenças entre o livro e o filme De Palma ( eu sugiro que você leia depois de ter lido Carrie e visto o longa, porque tem muitos spoillers)

No início de livro é relatado por moradores e pelo jornal local uma estranha chuva de pedras sobre a casa das White, que constitui a primeira manifestação do poder sobrenatural de Carrie. No filme, este evento estranho nem sequer é mencionado;

No filme, a sinistra estátua de um santo sintetiza muito bem a descrição de pinturas com motivos religiosos, além de antecipar o trágico destino da mãe da protagonista. O desenvolvimento dos personagens que transitam no ambiente do High School é melhor desenvolvido. De Palma dá ênfase para os preparativos para o baile, que são mostrados gradativamente. Neste trecho, o filme descreve o despertar sexual de Carrie, por meio de pequenos detalhes: a escolha do corte de vestido, o momento em que ela experimenta as cores de batom. Além disso, o acompanhante de Carrie no filme é mais sensível e aos poucos quando está na companhia da garota, começa a se interessar por ela. Isso dá mais força para o que irá acontecer durante o baile ressaltado o aspecto trágico a sequencia do banho de sangue e suas  terríveis consequências;


                A sinistra estátua do quartinho: não se parece com alguém?
                                   
Apesar da passagem do baile ser reproduzida de forma bastante fiel a do romance, por do inovador e ousado uso de duas câmeras que permitem visualizá-la com mais detalhes, chama a atenção o momento hithcokiano que antecipa o famoso “banho de sangue” de Carrie que foi reproduzido inúmeras vezes em outros filmes e novelas. É carregada de suspense e tensão, a sequencia (infelizmente, ausente no livro), em que Sue – personagem que ganha maior destaque no filme, descobre por meio de um traveiling muito bem feito aonde acaba o misteriosa corda que está escondida atrás do palco;

No filme, Carrie é mais ingênua que no livro. Ela não expressa o desejo de matar todos aqueles que a humilham. Além disso, no livro a personagem mata intencionalmente sua mãe parando seu coração enquanto que no filme ela faz isso para se proteger. No filme, Carrie transpassa o corpo de Margareth com vários objetos, de modo que se torne uma cópia grotesca da  apavorante estátua do santo que está no quartinho, onde a garota é mantida presa;

No livro, Carrie destrói toda a cidade. Ela impede que o incêndio na escola seja apagado controlando com mente os hidrantes, com o propósito de esvaziá-los. Além disso, ela provoca um curto circuito na rede elétrica, que resulta na morte de muitas pessoas. No filme, o poder de destruição da garota é demonstrado de forma parcial, embora de  maneira eficiente, por meio da cena em que ela sentindo-se culpada da morte da mãe provoca o desabamento de sua casa e morre soterrada;

O final do filme também é diferente e, até mesmo mais impactante que o do livro. No romance de King, Carrie morre em decorrência de um ferimento provocado por uma facada desferida por sua mãe. Antes de morrer, ela é encontrada por Sue perto de um bar, considerado um antro de pecado por sua mãe. Também vale destacar a última cena do filme De Palma, que pelo modo como foi realizada e, principalmente, pela reação que provoca no espectador, constitui um dos momentos mais marcantes no cinema de horror até a época atual

                  A cena final do filme de De Palma, que fez muita gente levantar da cadeira.

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