segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Resenha: Sandman, uma obra-prima da fantasia


Neil Gaiman aos poucos conseguiu ocupar um lugar de destaque entre os autores de literatura fantástica. Nascido nos anos sessenta, na cidade litorânea de Portchester, interior da Inglaterra, ele tem uma vasta e diversificada produção literária e artística, que transita entre a prosa, a poesia, as histórias em quadrinhos e o cinema. Entre suas obras literárias destacam-se Smoke and  Mirrors e Fragile Things, duas coletâneas de seus principais contos e poemas, além de romances ganhadores do Hugo, Bram Stoker Awads e o Nebula, considerados os principais prêmios literários na categoria de fantasia. Além de ser um escrito prolífero, de grande poder imaginativo, Gaiman assim como o também britânico Alan Moore promoveu uma verdadeira revolução na configuração das Hqs.  


                            
Neil Gaiman

Gaiman por algum tempo se dedicou a criação das chamadas graphic novels que se destacam por suas tramas complexas e a abordagem temas densos, tais como a violência contra a mulher, a preservação da ecologia e o trauma de infância. Mas, apesar a importância dessas narrativas gráficas para a evolução da Hq como uma manifestação artística, Gaiman tornou-se mundialmente conhecido pela série Sandman, considerada até a época atual sua obra-prima.
É necessário comentar um pouco sobre sua origem. Nos anos noventa, a editora norte-americana DC Comics passou por uma fase de mudanças e seus editores revolveram criar um novo selo chamado Vertigo voltado para a publicação de Hqs voltadas para o público adolescente e adulto. Inicialmente, Gaiman foi contratado para ressuscitar um antigo herói chamado Sandman (homem-areia, uma referencia ao conto de Hans Christian Andersen, no qual um homem misterioso joga areia nos olhos das crianças para que elas adormeçam), que na verdade, não passava de versão de Batman, uma vez que o tal herói era um milionário sai à noite usando uma máscara e utilizava um gás sonífero para combater os bandidos.
Gaiman aceitou o desafio proposto pela DC Comics, mas fez tantas modificações que alteraram completamente a configuração original desse personagem. O autor deu uma nova imagem a Sandman, que do antigo herói somente conservou o nome. Posteriormente, o antigo Sandman seria retomado pela editora e ganharia uma nova série e também se encontraria com o novo Sandman em uma história chamada “Teatro dos Sonhos”. Além disso, Gaiman deslocou a ação de Nova York para o interior da Inglaterra e subverteu completamente a trama original.
Sandman, a série criada por Gaiman se destaca por seu formato inovador capaz de provocar estranheza naqueles que estão acostumados a ler histórias em quadrinhos. A série é uma verdadeira colcha de retalhos, embora muito bem costurada por Gaiman e seus colaboradores, dentre eles, o artista gráfico Dave Mckean, responsável pelas belas capas das edições da série, nas quais se destaca o emprego de técnicas, tais como a colagem e a sobreposição de imagens.
Sandman é cheia de personagens e situações que remetem a textos literários e da cultura pop de diferentes épocas e estilos.  Assim, os intricados enredos das histórias de Sandman são criados a partir de referências que podem ser encontradas em Macbeth e Sonho de uma noite de Verão, de William Shakespeare, às narrativas de As Mil e Uma Noites, obras da literatura gótica, contos de fadas, mitos de diversos países, destacando-se dentre eles os gregos que tem grande importância em seu desfecho e, até mesmo a obras clássicas da literatura, a exemplo de Contos de Cantebury, antigas histórias em quadrinhos, cinema e seriados populares de tv, música.  
Dentre os gêneros literários, constata-se que o gótico exerceu maior influência sobre o autor. Desde o início, com a primeira história intitulada “O sono dos justos”, em Sandman destaca-se vários elementos que remetem a este tipo de ficção, principalmente, a instauração de uma contínua atmosfera de suspense, tensão e mistério, envolvendo a existência evento sinistro e ameaçador, que o leitor não sabe exatamente o que é, consegue promover a desestabilização da realidade cotidiana  e capaz até de colocar sua continuidade em risco.
Além disso, a exploração do gótico não se restringe a referências ou apropriação de eventos e criaturas monstruosas que aparecem em obras literárias tais como os contos de Edgar Allan Poe, narrativas de H. P. Lovecraft, ou Vathek, romance gótico pouco conhecido de William Beckford e também se destaca em Sandman de forma bastante ousada e inovadora. Podemos dizer que assim como nos filmes de Tim Burton, nessa série o gótico se apresenta e destaca como um importante elemento estético. Seja, na maneira como são descritos cenários sinistros e misteriosos, a exemplo da antiga mansão, em que acontece grande parte do primeiro arco da série, ou no visual dos seus principais personagens. Sonho ou Morpheus por sua palidez, cabelos espetados e roupas pretas faz lembrar Robert Smith vocalista da banda gótica inglesa The Cure enquanto sua irmã gêmea a Morte com sua maquiagem carregada, em que se estaca os olhos pintados e até mesmo por sua atitude com traços de rebeldia se assemelha à imagem da cantora Siouxsie, integrante de outra banda gótica inglesa cult, que fez sucesso na década de 80: Siouxsie and the Basnsheess




                                
Sandman



Morte

Também sobre essa personagem é importante ressaltar que aparência dela na série rompeu complemente com a imagem iconográfica até então amplamente propagada pelo cinema, literatura e artes em geral. Na perceptiva de Gaiman a Morte não tem cara de caveira e muito menos segura uma foice; ela é descrita como uma moça, às vezes ingênua, que encara seu “trabalho” que consiste em levar todas as almas para o destino final, como se fosse uma tarefa como outro qualquer, o que dá a série um toque de humor – às vezes negro e ironia.
É a partir da incorporação em Sandman dos chamados Perpétuos – seres de origem desconhecida, sendo que cada um deles representa um aspecto da existência humana (sonho, desejo, destruição, desespero, morte, delírio e destino) e que existirão até que não nenhum sinal de vida no universo, que Gaiman deu origem a uma nova mitologia, a qual tem seu surgimento na retomada e releitura de entidades míticas de diversas culturas, destacando-se dentre elas, a greco-romana – a qual tem elementos da tragédia tais como o pathos e hubris que se destacam no arco final da série.  



  a reunião dos perpétuos

É Desejo, também irmã de Sonho, que também é chamado Morpheus (uma referência ao deus grego do sono), o personagem mais intrigante e uma das melhores criações de Gaiman. Por simbolizar metaforicamente o desejo humano, Desejo se apresenta como um hermafrodita, ou seja, é ao mesmo do sexo masculino e feminino. Assim, seu aspecto andrógeno é enfatizado na série por meio de imagens: ora ela aparece vestida com um terno masculino e outros momentos, ela se destaca por seu figurino ousado, em que aparece de espatilho e cinta-liga, o que contribui para demonstrar sua sensualidade latente. Além disso, ao logo de toda a série, Desejo assume grande importância por arquitetar varias maquinações com o propósito de destruir Morpheus, dando origem a uma série de situações, que posteriormente, conduzem a um desfecho inesperado, trágico e surpreendente.

                             
Desejo

Como é possível perceber que Sandman no decorrer de seu desenvolvimento se torna cada vez mais complexa, na qual são inseridos vários mistérios sobre alguns personagens, principalmente, acerca do paradeiro de Destruição, um dos perpétuos que permanecem sem solução em seu encerramento, afastando-a aos poucos do universo da DC ao ponto da aparição de certos personagens famosos desta editora, tais como Batman é somente um mero coadjuvante em dos arcos da série.
Gaiman também atribui a Sandman um aspecto experimental, uma vez que em suas histórias experimentou várias técnicas narrativas (flashbacks, elipses, recuos e avanços, mudanças abrutas de focalização), estabeleceu diálogos com a cultura pop dentro de diferentes manifestações e faz uso da tradição da narrativa oral, promovendo assim contínuas inserções de “uma história dentro de outra história”, de modo a dar a série o formato de “boneca russa” que, novamente remonta às narrativas góticas do século XVIII e XIX.
É importante enfatizar que nessa série, Gaiman de maneira bastante sofisticada aborda as dificuldades da criação literária, principalmente por meio das inesperadas aparições de um “certo” dramaturgo e bardo inglês chamado William Shakespeare e de Calíope, a musa dos artistas em geral. Além disso, a série foi uma espécie de laboratório para que, Gaiman desenvolvesse dois de seus principais e premiados romances, Deuses Americanos e Os Filhos de Anansi, os quais também estabelecem um diálogo intertextual com a série a partir da retomada de personagens que podem ser encontradas em seus arcos narrativos.
Esta breve exposição é muito pouco para resumir no que consiste Sandman, sem dúvida, uma das melhores Hqs dos anos 80 e 90, e talvez do século. O melhor mesmo é se aventurar em suas páginas e acompanhar de perto a saga mítica de Morpheus, o Senhor dos sonhos e deixar que ele espalhe sua areia mágica nos olhos e, assim ingressar em mundo mágico surgido da mente de um brilhante escritor que nos faz refletir e até mesmo rever o conceito sobre o que vem a ser a literatura na época atual.         
cotação: ***** (excelente)

Obs.: A série Sandman foi lançada em formato de Hq pela editora Globo nos anos noventa e   relançada em formato de graphic novel pela editora Conrad que a dividiu em 10 volumes. Atualmente, estas edições podem ser encontradas no mercado virtual e em sebos a preços um pouco salgados. Quem preferir pode adquirir os volumes no total de 05 relançados pela editora Panini. Alguns podem estar esgotados, mas mesmo assim vale procurar nos sites de livrarias virtuais e sebos. 


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