Neil Gaiman aos poucos conseguiu ocupar um lugar de destaque entre os autores de literatura fantástica. Nascido nos anos sessenta, na cidade litorânea de Portchester, interior da Inglaterra, ele tem uma vasta e diversificada produção literária e artística, que transita entre a prosa, a poesia, as histórias em quadrinhos e o cinema. Entre suas obras literárias destacam-se Smoke and Mirrors e Fragile Things, duas coletâneas de seus principais contos e poemas, além de romances ganhadores do Hugo, Bram Stoker Awads e o Nebula, considerados os principais prêmios literários na categoria de fantasia. Além de ser um escrito prolífero, de grande poder imaginativo, Gaiman assim como o também britânico Alan Moore promoveu uma verdadeira revolução na configuração das Hqs.
Neil Gaiman
Gaiman por algum tempo se dedicou a criação
das chamadas graphic novels que se destacam por suas
tramas complexas e a abordagem temas densos, tais como a violência contra a
mulher, a preservação da ecologia e o trauma de infância. Mas, apesar a
importância dessas narrativas gráficas para a evolução da Hq como uma manifestação
artística, Gaiman tornou-se mundialmente conhecido pela série Sandman, considerada até a época atual sua obra-prima.
É necessário comentar um
pouco sobre sua origem. Nos anos noventa, a editora norte-americana DC Comics passou
por uma fase de mudanças e seus editores revolveram criar um novo selo chamado
Vertigo voltado para a publicação de Hqs voltadas para o público adolescente e
adulto. Inicialmente, Gaiman foi contratado para ressuscitar um antigo herói
chamado Sandman (homem-areia, uma referencia ao conto de Hans
Christian Andersen, no qual um homem misterioso joga areia nos olhos das
crianças para que elas adormeçam), que na verdade, não passava de versão de
Batman, uma vez que o tal herói era um milionário sai à noite usando uma
máscara e utilizava um gás sonífero para combater os bandidos.
Gaiman aceitou o desafio
proposto pela DC Comics, mas fez tantas modificações que alteraram
completamente a configuração original desse personagem. O autor deu uma nova
imagem a Sandman, que do antigo herói somente conservou o nome. Posteriormente,
o antigo Sandman seria retomado pela editora e ganharia uma nova série e também
se encontraria com o novo Sandman em uma história chamada “Teatro dos Sonhos”.
Além disso, Gaiman deslocou a ação de Nova York para o interior da Inglaterra e
subverteu completamente a trama original.
Sandman, a série criada por Gaiman se destaca por seu formato
inovador capaz de provocar estranheza naqueles que estão acostumados a ler
histórias em quadrinhos. A série é uma verdadeira colcha de retalhos, embora
muito bem costurada por Gaiman e seus colaboradores, dentre eles, o artista
gráfico Dave Mckean, responsável pelas belas capas das edições da série, nas
quais se destaca o emprego de técnicas, tais como a colagem e a sobreposição de
imagens.
Sandman é cheia de personagens e situações que remetem a textos
literários e da cultura pop de diferentes épocas e estilos. Assim, os intricados enredos das histórias de Sandman são criados a partir de
referências que podem ser encontradas em Macbeth
e Sonho de uma noite de Verão, de
William Shakespeare, às narrativas de As Mil e Uma Noites, obras da literatura
gótica, contos de fadas, mitos de diversos países, destacando-se dentre eles os
gregos que tem grande importância em seu desfecho e, até mesmo a obras
clássicas da literatura, a exemplo de Contos
de Cantebury, antigas histórias em quadrinhos, cinema e seriados populares
de tv, música.
Dentre os gêneros
literários, constata-se que o gótico exerceu maior influência sobre o autor.
Desde o início, com a primeira história intitulada “O sono dos justos”, em Sandman destaca-se vários elementos que
remetem a este tipo de ficção, principalmente, a instauração de uma contínua atmosfera
de suspense, tensão e mistério, envolvendo a existência evento sinistro e
ameaçador, que o leitor não sabe exatamente o que é, consegue promover a
desestabilização da realidade cotidiana e capaz até de colocar sua
continuidade em risco.
Além
disso, a exploração do gótico não se restringe a referências ou apropriação de eventos
e criaturas monstruosas que aparecem em obras literárias tais como os contos de
Edgar Allan Poe, narrativas de H. P. Lovecraft, ou Vathek, romance gótico pouco
conhecido de William Beckford e também se destaca em Sandman de forma bastante
ousada e inovadora. Podemos dizer que assim como nos filmes de Tim Burton, nessa
série o gótico se apresenta e destaca como um importante elemento estético. Seja,
na maneira como são descritos cenários sinistros e misteriosos, a exemplo da antiga
mansão, em que acontece grande parte do primeiro arco da série, ou no visual dos
seus principais personagens. Sonho ou Morpheus por sua palidez, cabelos
espetados e roupas pretas faz lembrar Robert Smith vocalista da banda gótica
inglesa The Cure enquanto sua irmã gêmea a Morte com sua maquiagem
carregada, em que se estaca os olhos pintados e até mesmo por sua atitude com
traços de rebeldia se assemelha à imagem da cantora Siouxsie, integrante de outra
banda gótica inglesa cult, que fez sucesso na década de 80: Siouxsie and the Basnsheess.
Sandman
Morte
Também sobre essa personagem
é importante ressaltar que aparência dela na série rompeu complemente com a
imagem iconográfica até então amplamente propagada pelo cinema, literatura e
artes em geral. Na perceptiva de Gaiman a Morte não tem cara de caveira e muito
menos segura uma foice; ela é descrita como uma moça, às vezes ingênua, que
encara seu “trabalho” que consiste em levar todas as almas para o destino
final, como se fosse uma tarefa como outro qualquer, o que dá a série um toque
de humor – às vezes negro e ironia.
É a partir da incorporação
em Sandman dos chamados Perpétuos –
seres de origem desconhecida, sendo que cada um deles representa um aspecto da
existência humana (sonho, desejo, destruição, desespero, morte, delírio e
destino) e que existirão até que não nenhum sinal de vida no universo, que Gaiman
deu origem a uma nova mitologia, a qual tem seu surgimento na retomada e releitura
de entidades míticas de diversas culturas, destacando-se dentre elas, a
greco-romana – a qual tem elementos da tragédia tais como o pathos e hubris que se destacam no arco final da série.
a reunião dos perpétuos
É Desejo, também irmã de
Sonho, que também é chamado Morpheus (uma referência ao deus grego do sono), o
personagem mais intrigante e uma das melhores criações de Gaiman. Por
simbolizar metaforicamente o desejo humano, Desejo se apresenta como um
hermafrodita, ou seja, é ao mesmo do sexo masculino e feminino. Assim, seu
aspecto andrógeno é enfatizado na série por meio de imagens: ora ela aparece
vestida com um terno masculino e outros momentos, ela se destaca por seu figurino
ousado, em que aparece de espatilho e cinta-liga, o que contribui para
demonstrar sua sensualidade latente. Além disso, ao logo de toda a série,
Desejo assume grande importância por arquitetar varias maquinações com o
propósito de destruir Morpheus, dando origem a uma série de situações, que
posteriormente, conduzem a um desfecho inesperado, trágico e surpreendente.
Desejo
Gaiman também atribui a Sandman um aspecto experimental, uma vez
que em suas histórias experimentou várias técnicas narrativas (flashbacks,
elipses, recuos e avanços, mudanças abrutas de focalização), estabeleceu
diálogos com a cultura pop dentro de diferentes manifestações e faz uso da
tradição da narrativa oral, promovendo assim contínuas inserções de “uma
história dentro de outra história”, de modo a dar a série o formato de “boneca
russa” que, novamente remonta às narrativas góticas do século XVIII e XIX.
É importante enfatizar
que nessa série, Gaiman de maneira bastante sofisticada aborda as dificuldades
da criação literária, principalmente por meio das inesperadas aparições de um
“certo” dramaturgo e bardo inglês chamado William Shakespeare e de Calíope, a
musa dos artistas em geral. Além disso, a série foi uma espécie de laboratório
para que, Gaiman desenvolvesse dois de seus principais e premiados romances, Deuses Americanos e Os Filhos de Anansi, os quais também
estabelecem um diálogo intertextual com a série a partir da retomada de
personagens que podem ser encontradas em seus arcos narrativos.
Esta breve exposição é
muito pouco para resumir no que consiste Sandman,
sem dúvida, uma das melhores Hqs dos anos 80 e 90, e talvez do século. O melhor
mesmo é se aventurar em suas páginas e acompanhar de perto a saga mítica de Morpheus,
o Senhor dos sonhos e deixar que ele espalhe sua areia mágica nos olhos e,
assim ingressar em mundo mágico surgido da mente de um brilhante escritor que
nos faz refletir e até mesmo rever o conceito sobre o que vem a ser a literatura na época
atual.
cotação: ***** (excelente)
Obs.:
A série Sandman foi
lançada em formato de Hq pela editora Globo nos anos noventa e relançada
em formato de graphic novel pela editora Conrad que a dividiu em 10 volumes.
Atualmente, estas edições podem ser encontradas no mercado virtual e em sebos a
preços um pouco salgados. Quem preferir pode adquirir os volumes no total de 05
relançados pela editora Panini. Alguns podem estar esgotados, mas mesmo assim
vale procurar nos sites de livrarias virtuais e sebos.
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