terça-feira, 26 de agosto de 2014

"Os Inocentes" e "Desafio do Além": convergências do fantástico no gênero do terror

O gênero do terror teve uma de suas melhores fases na arte cinematográfica durante a década de sessenta. Neste período, a Hammer retomou e revisou o gótico a partir de suas releituras de dois personagens emblemáticos: Frankenstein e Drácula. Esta produtora inglesa que ficou conhecida como "fábrica de monstros" investiu  maciçamente na realização de filmes que propuseram a erotização dos motivos sobrenaturais, destacando-se entre eles, o vampiro e também chamavam a atenção por suas cores berrantes e vivas, principalmente, o vermelho, que ganhava grande importância nas cenas de horror.
 Além das produções da Hammer criadas a partir de elementos que remetem ao Grand Guignon, também foram lançados outros filmes que, apesar de estar inseridos dentro do gênero terror, também estabeleceram uma relação de proximidade com o fantástico.
Vale ressaltar que a palavra "fantástico" aqui é empregada como um conceito criado pelo teórico lituano Tzventan Todorov para definir um tipo de gênero específico dentro do âmbito literário. De acordo com Todorov, o fantástico se configura a partir de um acontecimento que admite dois tipos de explicação: uma, na qual este pode ser explicado pelas leis naturais e outro, em que ele pode ser visto somente como uma manifestação sobrenatural.
Apesar dessa definição de Todorov ser polêmica até a época atual, gostaria de comentar sobre dois filmes também produzidos na década de sessenta, nos quais pode ser encontrada uma convergência do fantástico no gênero do terror.
O primeiro deles é "Os Inocentes" (1960), considerado a melhor adaptação para o cinema do famoso conto "A Volta do Parafuso", de Henry James. O filme já começa intrigante com o rosto aflito da governanta. Na sequencia, corta para a chegada dela à propriedade rural de Bly, na qual ela ingressa em uma outra realidade. Apoiando-se em excelente trabalho de fotografia em preto e branco, em que se destaca o jogo de luz e sombra, criada uma atmosfera gótica. O espectador logo percebe que há algo muito errado neste cenário - a cena em que  um inseto sai da boca de uma estátua é um forte indicio de que este está dominado por algum tipo de presença maligna. Por outro lado, a governanta (a bela atriz escocesa Deborah Kerr, em sua interpretação mais marcante)aos poucos começa a demonstrar sinais de perturbação mental diante desses estranhos eventos que, aparentemente não pode ser explicados, destacando-se dentre eles, a aparição de um homem misterioso que olha na sua sua direção. 
A situação se complica com o retorno de Miles que é expulso da escola por um motivo que não é revelado, embora, seja sugerido que este é muito grave e está relacionado com seu comportamento inadequado e até mesmo "degenerado". O garoto adota uma postura adulta quando está perto da governanta e fortalece sua ligação com sua irmã Flora. A união de ambos deixa a governanta ainda mais preocupada, uma vez que ela passa a acreditar que os irmãos estão possuídos pelos fantasmas de Quint, um ex-capataz da propriedade rural, muito ligado a Miles  e de sua companheira, Miss Jessel, que era exercia a mesma função dela, era perceptora das crianças. 
É partir desse ponto que "Os Inocentes" se torna cada mais ambiguo em sua exploração da temática sobrenatural. Uma de suas cenas mais assustadoras - e, com certeza, uma das mais marcante do cinema de terror ocorre quando a governanta está conversando com Mile e vê atrás do garoto o rosto o perverso e sorridente de Quint se formando na vidraça. Pela maneira como essa cena é construída, temos a impressão que a presença fantasmagórica de Quint pode ter sido gerada pela fértil imaginação da governanta, que se encontra aterrorizada diante de uma estranha situação a qual escapa de seu controle.
Em seu  desfecho, "Os Inocentes" termina de forma abruta, do mesmo modo estranho e inexplicável que o conto de James, preservando intacta a aura de mistério  que envolve os fantasmas e, assim, consegue intrigar o espectador. É justamente por criar e manter essa indefinição entre a realidade e a ilusão, que "Os Inocentes" pode ser considerado uma obra-prima do terror e do chamado "cinema fantástico".
Outro filme produzido na década de sessenta, no qual o fantástico se configura a partir do gênero terror é "Desafio do Além", de 1963. Baseado em The Hauting of Hill House, conhecido romance de Shirley Jackson, este também propõe uma abordagem diferenciada do motivo do fantasma. O filme se inicia a partir da instauração de um elemento importante nas narrativa góticas: o conflito entre a razão e o inexplicável. É com o propósito de solucionar os estranhos e macabros eventos envolvendo uma sinistra casa que um grupo de pessoas resolvem passar um final de semana em seu interior para investigá-la e, assim comprovar a existência ou não a existência de eventos sobrenaturais no local. Dentre elas se destaca Eleonor (Julie Harris em excepcional desempenho), uma mulher sofrida e que aos poucos demonstra sofrer de desequilíbrio emocional. Durante a noite,  Eleonor é perturbada por estranhos acontecimentos que ocorrem no interior da casa, tais como intensas batida na porta, que a deixam em constante estado de tensão e lhe provocam intensas reações de medo e terror. 
É importante enfatizar que neste filme dirigido por maestria por Robert Wise esses estranhos eventos nunca são mostrados e somente vistos pelas perspectiva dos personagens, principalmente, pelo ponto de vista distorcido de Eleonor que mesmo antes de chegar na antiga mansão já demonstra o desejo permanecer ali e não retornar.
Assim com "Os Inocentes" o espectador na cena final de "Desafio do Além" se perguntará até que ponto o sobrenatural se fez presente em sua narrativa. Seu desfecho sugere que uma possível explicação para a existência do elemento sobrenatural na psique perturbada de Eleanor, que pode ser capaz de libertar forças estranhas e poderosas as quais podem não se configurarem a partir de manifestações sobrenaturais. Também chama a atenção em "Desafio do Além" seu desfecho inesperado e surpreendente, que deixa muita coisa no ar, sem explicação, de modo a obrigar o espectador a tirar suas próprias conclusões sobre o que o aconteceu naquele lugar sinistro.
É por sua narração ousada, em que grande parte dos acontecimentos são vistos pela ótica de Eleonor e também por sua ambientação gótica elaborada, na qual a imensa e decadente casa devido a sua importância na trama se torna um personagem, que "Desafio  do Além" se tornou um clássico do gênero do terror admirado por diretores de calibre, tais como Martin Scorsesse. Além disso, por sua configuração, o filme também se insere na esfera do fantástico, pois possibilita diferentes interpretações.
Assim, "Os Inocentes" e "Desafio do Além" demonstram que o terror não se faz somente a partir da violência e de criaturas monstruosas. Ao contrário do que muitos imaginam, o melhor tipo de terror é aquele criado a partir de situações inexplicáveis, que fogem a única explicação racional e conclusiva, permanecendo nas sombras da razão como algo enigmático, capaz de desafiar e instigar nossa imaginação.  
"Os Inocentes" : ***** (excelente)
"Desafio do Além": ***** (excelente)




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