Quando falamos sobre a infância quase sempre nos vem a mente boas lembranças: passeio no parque, saída no domingo para tomar sorvete, visita na casas dos avós, não pensar em nada e somente entregar-se a infinitas brincadeiras. No entanto, na literatura, nem sempre esse período é retratado como um "mundo cor-de-rosa". Charles Dickens e as irmãs Brontë em suas obras (Grandes Esperanças, O Morro dos Ventos Uivantes, Jane Eyre) demonstraram que ao contrário do que muitos dizem, nem sempre a infância é a melhor fase de nossas vidas.
É a partir dessa perspectiva um pouco pessimista, que Neil Gaiman desenvolveu seu novo romance "O oceano no fim do caminho". Neste, vemos todos os eventos, alguns deles muito estranhos e com contornos fantásticos pela perspectiva de um garoto de sete anos. De forma intencional, Gaiman não o nomeia, de modo a fazer com que o leitor se identifique com ele. Habilidoso na arte da criação literária, Gaiman não somente consegue dar "voz" ao personagem-narrador por meio de uma linguagem infantil, mas também faz um mergulho em seu universo particular. Dessa forma, o escritor inglês dá vazão aos seus medos: o aprisionamento, o abandono material, e até mesmo a falta de amor dos pais são terrores que tiram o sossego do personagem, e, que são transferidos para nós, leitores. Além disso, como havia feito em outros textos, Gaiman faz referências a vários livros, alguns deles, "clássicos infantis ingleses", associando-os também a infância, afinal é nessa fase que surge o interesse pela leitura e também os futuros autores, criando assim um interessante exercício de metalinguagem.
Novamente em "O Oceano no fim do caminho" se destaca a capacidade de Gaiman de dar vida a uma espécie de "microcosmo fantástico", que se sobrepõe a realidade cotidiana. O autor cria seres sobrenaturais a partir da reconfiguração de figuras míticas que aparecem em outros obras, dentre elas, a mais conhecida e considerada por muitos de seus fãs sua maior criação: a graphic novel "Sandman", uma fantasia que por sua estrutura narrativa mítica pode ser comparada a "Senhor dos Anéis" de Tolkin.
Assim, Gaiman consegue, mais uma vez, elaborar uma trama onde podem ser entrados elementos de contos de fadas clássicos (entidades que ajudam o herói em momentos de perigo), góticos (criaturas monstruosas que ameaçam e desestabilizam emocionalmente o protagonista, e que evocam seus medos) e diálogos intertextuais. Também nesta obra, Gaiman faz uso de metáforas em profusão, que remetem a infância, a memória e, até mesmo ao poder da imaginação e podem ser compreendidas de diversas formas. Assustador em alguns momentos, e cheio de poesia e nostalgia em outros, O "oceano do fim do caminho", assim como título sugere, não termina mesmo quando chegamos a sua última página e talvez nisso podemos encontrar seu maior mérito como obra literária.
Gaiman como poucos autores, nos obriga a repassar toda a história, de modo que possamos tentar compreender alguns mistérios que permanecem sem solução neste seu "Oceano", onde o leitor encontrará um pouco de tudo: aventura, horror, suspense, e magia, sempre em doses equilibradas. Dessa forma, por meio de sua nova obra-prima, onde transparece sua escrita mágica, Neil Gaiman consegue retratar de forma convincente um período significativo da vida de todos nós, que assim como o do protagonista é constituído por momentos assustadores e mágicos que permanecem vivos em nossa memória para sempre.
Cotação: ***** (excelente)
Nenhum comentário:
Postar um comentário