Imagine a seguinte cena: uma
mansão cercada de sombras à beira de um lado, onde um grupo de pessoas que está
entediado com a tempestade lá fora, mas ao mesmo tempo com medo dos trovões,
para passar o tempo começam a contar histórias de horror, cada uma mais
assustadora que a outra. Imaginou? Este grupo é
formado por uma jovem chamada Mary Godwin que, apesar de ter somente dezoito
anos de idade já tinha passado por várias tragédias pessoais, dentre elas,
sucessivos e traumáticos abortos; seu amante, Percy Shelley um poeta talentoso,
mas um tanto imaturo e viciado em ópio; a irmã de Mary, Claire Clairmont, uma
jovem de imaginação fértil, com pretensões literárias; Lord Byron, outro poeta
também igualmente talentoso, mas com temperamento de bad
boy e sempre envolvido em
sucessivos escândalos de cunho sexual, que faziam a alegria da imprensa
britânica e John Polidore, seu médico que, apesar de ser fervorosamente
católico, não conseguia esconder o sentimento "pecaminoso" que nutria pelo seu patrão.
Você consegue visualizar todos eles reunidos numa noite
escura à beira de uma lareira contando essas histórias de horror cheias de
cenas assustadoras, que faziam com que os críticos literários torcessem o nariz
e os leitores tivessem arrepios de prazer? Vamos acrescentar a essa cena,
o surgimento de duas obras literárias que, além de terem criado duas figuras míticas (um monstro solitário e uma criatura sensual e sedenta de sangue),
que definiram os rumos da literatura gótica inglesa em pleno início século XIX,
- época essa marcada por grandes descobertas na área da Ciência-, também
contribuíram de forma significativa para a configuração da estética de horror moderno: Frankenstein e O vampiro. Por fim, para
tornar esta reunião ainda mais instigante, acrescente a perspectiva de um
cineasta inglês conhecido por seu estilo transgressivo, onde se destacam as
cenas de nudez, a crítica à religião e situações bizarras.
O resultado disso é "Gothic", de Ken
Russel, um dos filmes mais estranhos e ao mesmo tempo fascinantes produzidos na
década de oitenta. Ele é do tipo que não admite meio termo: ou você gosta
considerando-o no mínimo um cult
movie, ou odeia porque acha que kitsch, e, até mesmo "tosco".
Gostando ou não do filme de Russel
(afinal o gosto estético é pessoal, e, às vezes, depende de fatores que você
nem mesmo consegue definir), este é o que melhor retrata os anos loucos dos
românticos ingleses, que são descritos em “Gothic” como pé-hippies, que demonstram
abertamente sua revolta contra a sociedade "careta" da época e só querem
saber de amor livre, drogas e muita literatura gótica. Dentro desse grupo, Mary
Godwin, que depois viria a torna-se Mary Shelley e John Polidore, escritores,
na atualidade lembrados em pequenas notas de rodapé em livros sobre literatura
inglesa, e, somente parcialmente conhecidos somente por suas obras.
Infelizmente, dois outros membros do grupo da vila Diodati, apontados como
expoentes do romantismo inglês teriam uma sorte ainda pior. Percy Shelley e,
principalmente, Lorde Byron, também não são mais conhecidos por longos poemas
em prosa, onde se destaca a abordagem questões filosóficas e metafísicas, best-sellers no início no século XIX, capazes de torna-los celebridades - a
cena do filme de Russel em que Percy é perseguido por duas jovens muito
animadas ilustra bem esse culto à fama de ambos-, mas como loucos, libertinos,
que mergulharam de "cabeça" em um processo de alienação que os
levaram a uma rota de destruição.
"Gothic" também se destaca por ser
cheio de referências ao romance Frankenstein,
que dialogam de forma inteligente e instigante com seu processo de criação. No
filme, Percy Shelley é descrito como iluminista deslumbrado com os avanços da
ciência à época. Em uma cena significativa, que evoca o modo como o monstro é
“gerado”, ele sobe no telhado nu e chapado pelo efeito do ópio e grita: "A
eletricidade é a fonte da vida". Em outro momento do filme, Mary Shelley
vê uma sombra ameaçadora observando-a atrás da cortina, remetendo assim a uma
significativa passagem de sua obra, quando a criatura de Victor Frankenstein,
repete o mesmo gesto. Além de Frankenstein,
o filme de Russel também presta uma espécie de tributo ao conto O vampiro, de Polidore. Assim
como Lord Rutheven, o protagonista desta narrativa, Byron, o poeta romântico,
conhecido por seu comportamento transgressor, é retratado em "Gothic"
com um homem misterioso, violento que seduz e se alimenta de suas vítimas. Por
outro lado, no filme, sua outra face desconhecida é revelada: por trás do gosto
pela violência, e do prazer de chocar, Byron é um ser humano triste, com traços
de loucura e que sofre pela perda da mulher amada. Ou seja, ele encarna o
típico herói trágico. Mais romântico que isso é impossível.
O filme também se destaca sua inusitada abordagem do
elemento sobrenatural, que procura provocar mais o terror que o horror. Em
vários momentos, os personagens têm a nítida impressão que, por meio de um
ritual mágico eles liberaram forças malignas, que os ameaçam e se manifestam de
forma muito estranha (uma substância viscosa que vaza nos cantos da casa,
aparições sobrenaturais, o estranho comportamento de Claire, dando sinais que
está possuída por alguma entidade maligna). Contudo, ao longo do
desenvolvimento do filme, que vai ficando cada vez mais irreal, assumindo
assim, contornos surreais, o espectador também pode ter a impressão que tais
horrores podem ter suas origens em algo que pode ser facilmente explicado: a
imaginação que sem amarras, conforme demonstra a introdução escrita pela
própria Mary Shelley, é capaz de dar vida aos nossos medos mais terríveiDessa forma, "Gothic" pode ser compreendido como uma
metáfora visual que ilustra muito bem os perigos que têm seu surgimento na
criação literária desenfreada, capaz de conduzir o indivíduo a loucura e a
alienação da realidade. Apesar do episódio do verão assombrado de 1816. que por
si só pode ser considerado "literário" e ter sido recriado sucessivas
vezes, sendo uma dessas recriações, As piedosas, o criativo romance do
argentino Frederico Argahazi, é o filme de Russel que melhor conseguiu
demonstrar permanência até o tempo atual da imortal obra-prima de Mary Shelley,
com sua marcante imagem final, onde a criatura surgida da imaginação fértil de
uma garota, mesmo depois de tanto tempo, se mantém viva, nos ameaçando com sua
assustadora presença.
Nenhum comentário:
Postar um comentário