quarta-feira, 1 de maio de 2013

Filme:"Gothic": uma metáfora visual sobre os excessos da imaginação gótico-romântica

         
Imagine a seguinte cena: uma mansão cercada de sombras à beira de um lado, onde um grupo de pessoas que está entediado com a tempestade lá fora, mas ao mesmo tempo com medo dos trovões, para passar o tempo começam a contar histórias de horror, cada uma mais assustadora que a outra. Imaginou?  Este grupo é formado por uma jovem chamada Mary Godwin que, apesar de ter somente dezoito anos de idade já tinha passado por várias tragédias pessoais, dentre elas, sucessivos e traumáticos abortos; seu amante, Percy Shelley um poeta talentoso, mas um tanto imaturo e viciado em ópio; a irmã de Mary, Claire Clairmont, uma jovem de imaginação fértil, com pretensões literárias; Lord Byron, outro poeta também igualmente talentoso, mas com temperamento de bad boy e sempre envolvido em sucessivos escândalos de cunho sexual, que faziam a alegria da imprensa britânica e John Polidore, seu médico que, apesar de ser fervorosamente católico, não conseguia  esconder o sentimento "pecaminoso" que nutria pelo seu patrão.
 Você consegue visualizar todos eles reunidos numa noite escura à beira de uma lareira contando essas histórias de horror cheias de cenas assustadoras, que faziam com que os críticos literários torcessem o nariz e os leitores tivessem arrepios de prazer?  Vamos acrescentar a essa cena, o surgimento de duas obras literárias que, além de terem criado duas figuras míticas (um monstro solitário e uma criatura sensual e sedenta de sangue), que definiram os rumos da literatura gótica inglesa em pleno início século XIX, - época essa marcada por grandes descobertas na área da Ciência-, também contribuíram de forma significativa para a configuração da estética de horror moderno: Frankenstein e O vampiro. Por fim, para tornar esta reunião ainda mais instigante, acrescente a perspectiva de um cineasta inglês conhecido por seu estilo transgressivo, onde se destacam as cenas de nudez, a crítica à religião e situações bizarras.
O resultado disso é "Gothic", de Ken Russel, um dos filmes mais estranhos e ao mesmo tempo fascinantes produzidos na década de oitenta. Ele é do tipo que não admite meio termo: ou você gosta considerando-o no mínimo um cult movie, ou odeia porque acha que kitsch, e, até mesmo "tosco".    
Gostando ou não do filme de Russel (afinal o gosto estético é pessoal, e, às vezes, depende de fatores que você nem mesmo consegue definir), este é o que melhor retrata os anos loucos dos românticos ingleses, que são descritos em “Gothic” como pé-hippies, que demonstram abertamente sua revolta contra a sociedade "careta" da época e só querem saber de amor livre, drogas e muita literatura gótica. Dentro desse grupo, Mary Godwin, que depois viria a torna-se Mary Shelley e John Polidore, escritores, na atualidade lembrados em pequenas notas de rodapé em livros sobre literatura inglesa, e, somente parcialmente conhecidos somente por suas obras. Infelizmente, dois outros membros do grupo da vila Diodati, apontados como expoentes do romantismo inglês teriam uma sorte ainda pior. Percy Shelley e, principalmente, Lorde Byron, também não são mais conhecidos por longos poemas em prosa, onde se destaca a abordagem questões filosóficas e metafísicas, best-sellers no início no século XIX, capazes de torna-los celebridades - a cena do filme de Russel em que Percy é perseguido por duas jovens muito animadas ilustra bem esse culto à fama de ambos-, mas como loucos, libertinos, que mergulharam de "cabeça" em um processo de alienação que os levaram a uma rota de destruição. 
"Gothic" também se destaca por ser cheio de referências ao romance Frankenstein, que dialogam de forma inteligente e instigante com seu processo de criação. No filme, Percy Shelley é descrito como iluminista deslumbrado com os avanços da ciência à época. Em uma cena significativa, que evoca o modo como o monstro é “gerado”, ele sobe no telhado nu e chapado pelo efeito do ópio e grita: "A eletricidade é a fonte da vida". Em outro momento do filme, Mary Shelley vê uma sombra ameaçadora observando-a atrás da cortina, remetendo assim a uma significativa passagem de sua obra, quando a criatura de Victor Frankenstein, repete o mesmo gesto. Além de Frankenstein, o filme de Russel também presta uma espécie de tributo ao conto O vampiro, de Polidore. Assim como Lord Rutheven, o protagonista desta narrativa, Byron, o poeta romântico, conhecido por seu comportamento transgressor, é retratado em "Gothic" com um homem misterioso, violento que seduz e se alimenta de suas vítimas. Por outro lado, no filme, sua outra face desconhecida é revelada: por trás do gosto pela violência, e do prazer de chocar, Byron é um ser humano triste, com traços de loucura e que sofre pela perda da mulher amada. Ou seja, ele encarna o típico herói trágico. Mais romântico que isso é impossível. 
O filme também se destaca sua inusitada abordagem do elemento sobrenatural, que procura provocar mais o terror que o horror. Em vários momentos, os personagens têm a nítida impressão que, por meio de um ritual mágico eles liberaram forças malignas, que os ameaçam e se manifestam de forma muito estranha (uma substância viscosa que vaza nos cantos da casa, aparições sobrenaturais, o estranho comportamento de Claire, dando sinais que está possuída por alguma entidade maligna). Contudo, ao longo do desenvolvimento do filme, que vai ficando cada vez mais irreal, assumindo assim, contornos surreais, o espectador também pode ter a impressão que tais horrores podem ter suas origens em algo que pode ser facilmente explicado: a imaginação que sem amarras, conforme demonstra a introdução escrita pela própria Mary Shelley, é capaz de dar vida aos nossos medos mais terríveiDessa forma, "Gothic" pode ser compreendido como uma metáfora visual que ilustra muito bem os perigos que têm seu surgimento na criação literária desenfreada, capaz de conduzir o indivíduo a loucura e a alienação da realidade. Apesar do episódio do verão assombrado de 1816. que por si só pode ser considerado "literário" e ter sido recriado sucessivas vezes, sendo uma dessas recriações, As piedosas, o criativo romance do argentino Frederico Argahazi, é o filme de Russel que melhor conseguiu demonstrar permanência até o tempo atual da imortal obra-prima de Mary Shelley, com sua marcante imagem final, onde a criatura surgida da imaginação fértil de uma garota, mesmo depois de tanto tempo, se mantém viva, nos ameaçando com sua assustadora presença.                               

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